São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2007

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CONTARDO CALLIGARIS

Fama e narcisismo

Em uma "sociedade narcisista", a invisibilidade é mais intolerável que a prisão

NA CONVERSA leiga, "Fulano é narcisista" significa que ele adora se ver no espelho e nunca pensa nos outros.
Na clínica, o sentido da expressão é diferente: o traço dominante da "personalidade narcisista" é a insegurança. Narcisista é quem está sempre se questionando: "O que os outros enxergam em mim? Será que gostam do que vêem?".
Em ambos os casos, o narcisista se preocupa com sua imagem. Mas, na conversa leiga, ele seria apaixonado por ela (como o Narciso do mito), enquanto, segundo a clínica, ele seria dramaticamente atormentado pelo sentimento de que sua imagem depende do olhar dos outros.
De fato, a clínica tem razão: no espelho, enxergamos sempre e apenas o que os outros vêem (ou o que imaginamos que eles vejam). O mesmo mal-entendido aparece quando a gente constata que vive numa "sociedade narcisista".
Na conversa leiga, essa constatação soa como uma queixa moral: estaríamos vivendo no mundo do "cada um por si". A clínica sugere o contrário: numa sociedade narcisista, cada um depende excessivamente dos outros. Somos desprovidos de essência: sou filho SE meus pais me amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim, sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem, sou colunista SE você agüentou ler até aqui. O espelho que nos define não é o de Narciso, é o da bruxa de Branca de Neve, um espelho que interrogamos, ansiosos.
Ora, recentemente, assisti, fascinado, ao processo de seleção da sexta temporada do programa "American Idol" (no canal Sony). É um programa parecido com "Fama", da Globo de dois ou três anos atrás, e com "Ídolos", do SBT. Trata-se de descobrir novos cantores e cantoras.
O vencedor é eleito pelo público da TV, mas o que me cativou foi a longa fase inicial, em que os finalistas são selecionados por um júri, entre milhares de jovens concorrentes.
Todos os candidatos parecem entusiasticamente certos de que serão o futuro ídolo, mas a audição da grandíssima maioria é propriamente constrangedora.
No mesmo canal, há outro programa parecido: "American Inventor", em que desfilam inventores convencidos de que seu achado mudará o mundo, mesmo que se trate da máquina acariciadora de cachorro para dono preguiçoso (uma das invenções propostas).
O que leva milhares de sujeitos a encarar uma espécie de humilhação pública? Será que eles são narcisistas à moda da conversa leiga, enamorados de si mesmos a ponto de perder toda autocrítica? Por algum milagre do amor materno, eles guardariam uma imagem de si positiva e imperturbável: "Deixe o mundo falar, pois eu fui, sou e sempre serei o ídolo da minha mãe" (alguns concorrentes, aliás, compareciam acompanhados por uma mãe embevecida).
É possível. Mas, nas palavras de muitos candidatos entrevistados, aparecia outra coisa: uma vontade dolorosa de despertar um olhar de reconhecimento não só no público, mas nos seus familiares, ausentes e indiferentes. Era como se eles estivessem dispostos a qualquer coisa para deixar, enfim, de ser invisíveis: "Riam de mim, mas ao menos me vejam". Pode parecer paradoxal que alguém tente chamar a atenção (do pai, da mãe, da irmã e do mundo) expondo-se ao ridículo e ao fracasso.
Mas, aparentemente, acontece que escárnio e zombaria são um preço aceitável por um (triste) momento de fama.
Uma analogia talvez nos ajude a entender. As estatísticas dizem que há mais jovens que adultos delinqüentes. Justificação tradicional (além da "testosterona" da adolescência): os jovens andam em grupo.
Portanto, é freqüente, no caso deles, que haja mais de um réu por crime.
Certo. Mas também tudo indica que os jovens delinqüentes são presos mais facilmente que os adultos. Não é imperícia: parece que, de uma certa forma, eles se deixam prender, como se seu gesto transgressor tivesse como finalidade última o encontro com a polícia e o juiz. Por quê?
Para a dramática insegurança do narcisismo (aqui no sentido clínico), uma condenação ou um fracasso humilhante apresentam uma vantagem parecida: ambos são preferíveis ao silêncio do outro. Num mundo em que a gente só existe pelo olhar alheio, a invisibilidade é mais intolerável do que o escárnio ou a prisão.
PS.: Na semana retrasada, comentei o filme "Pecados Íntimos". Li, nestes dias, o livro no qual ele se inspira, "Criancinhas", de Tom Perrotta (Objetiva): é tão tocante e forte quanto o filme, se não mais.


ccalligari@uol.com.br

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