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NINA HORTA
O jejum e as lendas sobre o jejum
Os jejuns variavam.
O que não variava era a safadeza dos homens para burlar as regras
NADA COMO um bom jejum para nos fazer levitar. Subir aos
céus. Nestes tempos laicos,
só fechamos a boca para emagrecer.
Quem tem saudade do jejum? Ninguém se lembra, com certeza.
Pois as donas-de-casa da Idade
Média (já tinha dona-de-casa?), acabadas as farras e as bebedeiras dos
festivais de inverno, como o nosso
bom Carnaval, mal espalhavam as
cinzas na cabeça, começavam o jejum de 40 dias. Nada de bolos, biscoitos, doces e bebidas alcoólicas.
No máximo um peixe com legumes,
e o organismo ia se limpando dos excessos do ano. E os pescadores se rejubilavam, pois era época de mares
calmos e peixes gordos.
São Tomás de Aquino definia como carne tudo o que vinha de animais de sangue quente que viviam e
respiravam na terra. Os peixes, da
água, tinham sangue frio e não eram
carne. Roma, gulosa, custou a aceitar o jejum. Foi o papa Gregório 1º
que decretou jejum total durante 40
dias. Nada de carne nem de laticínios, nem de ovos, o que balanceava
e equilibrava a comilança do ano.
Os jejuns variavam através das
épocas e dos lugares. O que não variava era a eterna safadeza dos homens para burlar as regras. A série
de truques não tinha fim. Os fiéis vacilavam, como era difícil!!!
Alguém conta que na cozinha do
mosteiro de Alcobaça, em Portugal,
passava um braço de rio. Alguns frades espertos, valendo-se da ignorância ou conivência dos outros, jogavam ao rio porcos e vitelos que eram
pescados na cozinha, todos se espantando com os tipos estranhos de
peixes da época. E papavam todos.
Os lagartos foram estudados e repensados. E as espécies que subiam
em árvores de vez em quando caíam
do galho dentro d" água e eram imediatamente taxadas de peixe.
Não só a carne era motivo de discussões infindáveis. A bebida também. Primeiro foi o chocolate. Os espanhóis, ao chegarem ao México, se
encantaram com a bebida energizante e reconfortante. Afinal, chocolate era bebida ou comida? Vários
papas deram seu parecer, mas quem
ganhou a parada foram os jesuítas,
que monopolizavam o mercado de
cacau do Novo Mundo e lucravam
com isso. Resolveram que chocolate
podia.
Muito recentemente, a Igreja de
Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias teve outra dessas discussões,
pois recebeu uma revelação que
proibía o uso de bebidas quentes, logo, do café e do chocolate. Mas e se
os bebessem frios? Os muito rígidos,
dentro da mesma seita, acharam de
proibir também a Coca-Cola por
causa da cafeína.
O que ficou na mente de muito europeu católico foi a implicância contra o bacalhau que cheirava mal.
Elizabeth David, a grande escritora e cozinheira inglesa que acordou
ainda menina para a comida na
França, conta que fugia do almoço
das sextas na casa burguesa onde se
hospedava para escapar do jejum de
peixe. Para ela, era um mistério que
pessoas tão ligadas à boa comida
conseguissem comer aquela gororoba que era o bacalhau seco e cozido
de sexta-feira.
"Cinzento, pegajoso, em grandes
postas horrendas." Era praticamente jogado na travessa. Sem molho ou
acompanhamento. Naquele tempo,
ela desconhecia as infinitas e deliciosas maneiras de preparar o bacalhau na Provença. E a cozinheira deles, ainda por cima, era normanda. E
a gente do sul ria só com a idéia de
que um normando soubesse preparar bem um bacalhau. Podia executar os melhores mexilhões, "moules
à la crème", mas esse peixe seco não
poderia fazer parte do repertório.
E assim vão os jejuns e as lendas
sobre os jejuns. A nossa época, com
certeza, será lembrada como aquela
em que se fazia jejum o ano inteiro e
todos se locupletavam com uma boa
bacalhoada na Sexta-Feira Santa e
não se preocupavam a mínima se
podiam ou não comer chocolate,
que, ao contrário, é parte integrante
da dieta da Quaresma.
ninahorta@uol.com.br
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