São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2007

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NINA HORTA

O jejum e as lendas sobre o jejum

Os jejuns variavam. O que não variava era a safadeza dos homens para burlar as regras

NADA COMO um bom jejum para nos fazer levitar. Subir aos céus. Nestes tempos laicos, só fechamos a boca para emagrecer.
Quem tem saudade do jejum? Ninguém se lembra, com certeza.
Pois as donas-de-casa da Idade Média (já tinha dona-de-casa?), acabadas as farras e as bebedeiras dos festivais de inverno, como o nosso bom Carnaval, mal espalhavam as cinzas na cabeça, começavam o jejum de 40 dias. Nada de bolos, biscoitos, doces e bebidas alcoólicas.
No máximo um peixe com legumes, e o organismo ia se limpando dos excessos do ano. E os pescadores se rejubilavam, pois era época de mares calmos e peixes gordos.
São Tomás de Aquino definia como carne tudo o que vinha de animais de sangue quente que viviam e respiravam na terra. Os peixes, da água, tinham sangue frio e não eram carne. Roma, gulosa, custou a aceitar o jejum. Foi o papa Gregório 1º que decretou jejum total durante 40 dias. Nada de carne nem de laticínios, nem de ovos, o que balanceava e equilibrava a comilança do ano.
Os jejuns variavam através das épocas e dos lugares. O que não variava era a eterna safadeza dos homens para burlar as regras. A série de truques não tinha fim. Os fiéis vacilavam, como era difícil!!!
Alguém conta que na cozinha do mosteiro de Alcobaça, em Portugal, passava um braço de rio. Alguns frades espertos, valendo-se da ignorância ou conivência dos outros, jogavam ao rio porcos e vitelos que eram pescados na cozinha, todos se espantando com os tipos estranhos de peixes da época. E papavam todos.
Os lagartos foram estudados e repensados. E as espécies que subiam em árvores de vez em quando caíam do galho dentro d" água e eram imediatamente taxadas de peixe. Não só a carne era motivo de discussões infindáveis. A bebida também. Primeiro foi o chocolate. Os espanhóis, ao chegarem ao México, se encantaram com a bebida energizante e reconfortante. Afinal, chocolate era bebida ou comida? Vários papas deram seu parecer, mas quem ganhou a parada foram os jesuítas, que monopolizavam o mercado de cacau do Novo Mundo e lucravam com isso. Resolveram que chocolate podia.
Muito recentemente, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias teve outra dessas discussões, pois recebeu uma revelação que proibía o uso de bebidas quentes, logo, do café e do chocolate. Mas e se os bebessem frios? Os muito rígidos, dentro da mesma seita, acharam de proibir também a Coca-Cola por causa da cafeína.
O que ficou na mente de muito europeu católico foi a implicância contra o bacalhau que cheirava mal. Elizabeth David, a grande escritora e cozinheira inglesa que acordou ainda menina para a comida na França, conta que fugia do almoço das sextas na casa burguesa onde se hospedava para escapar do jejum de peixe. Para ela, era um mistério que pessoas tão ligadas à boa comida conseguissem comer aquela gororoba que era o bacalhau seco e cozido de sexta-feira.
"Cinzento, pegajoso, em grandes postas horrendas." Era praticamente jogado na travessa. Sem molho ou acompanhamento. Naquele tempo, ela desconhecia as infinitas e deliciosas maneiras de preparar o bacalhau na Provença. E a cozinheira deles, ainda por cima, era normanda. E a gente do sul ria só com a idéia de que um normando soubesse preparar bem um bacalhau. Podia executar os melhores mexilhões, "moules à la crème", mas esse peixe seco não poderia fazer parte do repertório.
E assim vão os jejuns e as lendas sobre os jejuns. A nossa época, com certeza, será lembrada como aquela em que se fazia jejum o ano inteiro e todos se locupletavam com uma boa bacalhoada na Sexta-Feira Santa e não se preocupavam a mínima se podiam ou não comer chocolate, que, ao contrário, é parte integrante da dieta da Quaresma.


ninahorta@uol.com.br

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