São Paulo, sábado, 15 de abril de 2000


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RESENHA DA SEMANA
O êxtase da guerrilha

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


"Os Sete Pilares da Sabedoria", de T.E. Lawrence, é mais do que um livro. São vários. É um dos relatos mais ricos já escritos sobre a tática da guerrilha, como lembra Gilles Deleuze, um declarado admirador, em "Mil Platôs". É também a saga da constituição do mundo árabe contemporâneo. É a experiência mística e heróica de um homem no deserto. É o drama de consciência de um sujeito atormentado pelo fantasma da traição, por não ter podido cumprir suas promessas. É um livro de aventuras, um romance psicológico e uma tragédia. Mas é, antes de tudo, uma das grandes obras literárias do século 20.
Thomas Edward Lawrence nasceu em 1888, no País de Gales, numa família de origem irlandesa. Estudou arqueologia em Oxford e, em 1911, juntou-se a uma equipe de pesquisadores num sítio arqueológico hitita às margens do Eufrates. Com o início da Primeira Guerra, graças ao seu conhecimento da língua e dos povos do deserto, e à ausência de quadros especializados dentro do exército britânico, Lawrence foi requisitado pelo serviço de inteligência inglês no Cairo.
O Império Otomano dominava boa parte do Oriente Médio havia quatro séculos. Os turcos eram aliados dos alemães. Para vencê-los na região, os ingleses precisavam se aliar às tribos árabes insurgentes. É quando aparece a oportunidade para Lawrence pôr em prática a sua vocação heróica.
Enviado ao que hoje é a Arábia Saudita com a missão de convencer o xerife de Meca, autoridade máxima entre os povos nômades da região, a dar seu acordo a uma aliança entre a revolta árabe e os ingleses, Lawrence vai passar de conselheiro a líder da guerrilha contra os turcos.
Na origem dessa aliança, está a promessa que os ingleses fazem aos árabes, por meio de Lawrence, de que ao final da guerra eles terão uma nação independente e soberana. Em dois anos, de 1916 a 1918, a guerrilha dos beduínos vai minar o poderio turco no Oriente Médio, destruindo as comunicações ferroviárias e avançando para o norte, pela atual Jordânia, até Damasco, em ação orquestrada com o exército britânico, que toma a Palestina.
Todo o drama de Lawrence consiste em perceber, sobretudo depois do tratado Sykes-Picot, de 1916, que a promessa feita aos árabes depende da guerra de um homem só, a sua própria guerra, o que faz dele um personagem conradiano, uma espécie de Lord Jim das Arábias, como aponta Fernando Monteiro no prefácio da excelente tradução de C. Machado, publicada pela primeira vez em 1938 e agora reeditada.
Com o armistício e a assinatura do Tratado de Versalhes, os temores de Lawrence se confirmam. Sua promessa aos árabes é solapada pelos interesses dos vencedores europeus. O Oriente Médio é dividido em áreas de influência inglesa e francesa. Faiçal, o líder dos árabes, é expulso da Síria. Lawrence torna-se vítima de um grande drama de consciência de que "Os Sete Pilares da Sabedoria", publicado originalmente em edição não-comercial, em 1926, é o resultado mais extraordinário.
É difícil pensar num livro mais verdadeiro, cuja existência seja fruto de uma necessidade tão absoluta. Lawrence escreveu o livro, entre 1919 e 1922, porque era a única coisa que lhe restava diante do desespero e da desilusão, depois de ter-se engajado com tanta integridade numa luta cuja vitória seria paga com a traição e a desonra -em 1922, mudou de nome e se alistou na força aérea como piloto. Morreu em 1935, num acidente de moto.
Por ser tão verdadeiro, "Os Sete Pilares da Sabedoria" é um livro alucinado também. Seus adjetivos e eventuais maneirismos são consequência menos de uma vontade de fazer literatura do que da intensidade da experiência do autor.
Lawrence diz que essa experiência (do espírito) é grande demais para o próprio corpo, uma forma de loucura que emerge na índole sexual e masoquista que pontua o texto. O deserto, para ele, é o cenário de um êxtase místico.
No célebre filme de David Lean, "Lawrence da Arábia" (1962), quando um jornalista lhe pergunta o que o atrai ao deserto, o herói responde: "É limpo". No epílogo do livro, porém, ao lado da vontade de ganhar a guerra, da curiosidade, da aspiração de participar de um movimento nacional e da ambição histórica, Lawrence faz referência a um "motivo secreto".
"O motivo mais poderoso, de princípio a fim, havia sido de ordem pessoal, não mencionado aqui, mas que esteve presente em mim, ao que penso, em todas as horas destes dois anos."
É o que torna "Os Sete Pilares da Sabedoria" não só um relato de guerra ou uma saga histórica, mas um livro misterioso e único, em que os desejos mais secretos por trás da convicção e dos argumentos da razão deixam vislumbrar toda a complexidade de um homem, dando uma idéia ainda mais justa e espantosa da sua grandeza.


Avaliação:    

Livro: Os Sete Pilares da Sabedoria Título Original: Seven Pillars of Wisdom Autor: T.E. Lawrence Tradutor: C. Machado Editora: Record Quanto: R$ 55 (784 págs.)

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