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RESENHA DA SEMANA
O êxtase da guerrilha
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
"Os Sete Pilares da Sabedoria", de T.E. Lawrence, é mais
do que um livro.
São vários. É um
dos relatos mais ricos já escritos sobre a tática da guerrilha,
como lembra Gilles Deleuze,
um declarado admirador, em
"Mil Platôs". É também a saga
da constituição do mundo árabe contemporâneo. É a experiência mística e heróica de um
homem no deserto. É o drama
de consciência de um sujeito
atormentado pelo fantasma da
traição, por não ter podido
cumprir suas promessas. É um
livro de aventuras, um romance psicológico e uma tragédia.
Mas é, antes de tudo, uma das
grandes obras literárias do século 20.
Thomas Edward Lawrence
nasceu em 1888, no País de Gales, numa família de origem irlandesa. Estudou arqueologia
em Oxford e, em 1911, juntou-se a uma equipe de pesquisadores num sítio arqueológico
hitita às margens do Eufrates.
Com o início da Primeira
Guerra, graças ao seu conhecimento da língua e dos povos do
deserto, e à ausência de quadros especializados dentro do
exército britânico, Lawrence
foi requisitado pelo serviço de
inteligência inglês no Cairo.
O Império Otomano dominava boa parte do Oriente Médio havia quatro séculos. Os
turcos eram aliados dos alemães. Para vencê-los na região,
os ingleses precisavam se aliar
às tribos árabes insurgentes. É
quando aparece a oportunidade para Lawrence pôr em prática a sua vocação heróica.
Enviado ao que hoje é a Arábia Saudita com a missão de
convencer o xerife de Meca, autoridade máxima entre os povos nômades da região, a dar
seu acordo a uma aliança entre
a revolta árabe e os ingleses, Lawrence vai passar de conselheiro a líder da guerrilha contra os
turcos.
Na origem dessa aliança, está
a promessa que os ingleses fazem aos árabes, por meio de
Lawrence, de que ao final da
guerra eles terão uma nação independente e soberana. Em
dois anos, de 1916 a 1918, a
guerrilha dos beduínos vai minar o poderio turco no Oriente
Médio, destruindo as comunicações ferroviárias e avançando para o norte, pela atual Jordânia, até Damasco, em ação
orquestrada com o exército
britânico, que toma a Palestina.
Todo o drama de Lawrence
consiste em perceber, sobretudo depois do tratado Sykes-Picot, de 1916, que a promessa
feita aos árabes depende da
guerra de um homem só, a sua
própria guerra, o que faz dele
um personagem conradiano,
uma espécie de Lord Jim das
Arábias, como aponta Fernando Monteiro no prefácio da excelente tradução de C. Machado, publicada pela primeira vez
em 1938 e agora reeditada.
Com o armistício e a assinatura do Tratado de Versalhes,
os temores de Lawrence se confirmam. Sua promessa aos árabes é solapada pelos interesses
dos vencedores europeus. O
Oriente Médio é dividido em
áreas de influência inglesa e
francesa. Faiçal, o líder dos árabes, é expulso da Síria. Lawrence torna-se vítima de um grande drama de consciência de
que "Os Sete Pilares da Sabedoria", publicado originalmente
em edição não-comercial, em
1926, é o resultado mais extraordinário.
É difícil pensar num livro
mais verdadeiro, cuja existência seja fruto de uma necessidade tão absoluta. Lawrence escreveu o livro, entre 1919 e 1922,
porque era a única coisa que
lhe restava diante do desespero
e da desilusão, depois de ter-se
engajado com tanta integridade numa luta cuja vitória seria
paga com a traição e a desonra
-em 1922, mudou de nome e
se alistou na força aérea como
piloto. Morreu em 1935, num
acidente de moto.
Por ser tão verdadeiro, "Os
Sete Pilares da Sabedoria" é um
livro alucinado também. Seus
adjetivos e eventuais maneirismos são consequência menos
de uma vontade de fazer literatura do que da intensidade da
experiência do autor.
Lawrence diz que essa experiência (do espírito) é grande
demais para o próprio corpo,
uma forma de loucura que
emerge na índole sexual e masoquista que pontua o texto. O
deserto, para ele, é o cenário de
um êxtase místico.
No célebre filme de David
Lean, "Lawrence da Arábia"
(1962), quando um jornalista
lhe pergunta o que o atrai ao
deserto, o herói responde: "É
limpo". No epílogo do livro,
porém, ao lado da vontade de
ganhar a guerra, da curiosidade, da aspiração de participar
de um movimento nacional e
da ambição histórica, Lawrence faz referência a um "motivo
secreto".
"O motivo mais poderoso, de
princípio a fim, havia sido de
ordem pessoal, não mencionado aqui, mas que esteve presente em mim, ao que penso,
em todas as horas destes dois
anos."
É o que torna "Os Sete Pilares
da Sabedoria" não só um relato
de guerra ou uma saga histórica, mas um livro misterioso e
único, em que os desejos mais
secretos por trás da convicção e
dos argumentos da razão deixam vislumbrar toda a complexidade de um homem, dando
uma idéia ainda mais justa e espantosa da sua grandeza.
Avaliação:
Livro: Os Sete Pilares da Sabedoria
Título Original: Seven Pillars of
Wisdom
Autor: T.E. Lawrence
Tradutor: C. Machado
Editora: Record
Quanto: R$ 55 (784 págs.)
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