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CARLOS HEITOR CONY
Dois encontros com o papa
Não foi por gosto pessoal
nem por curiosidade natural quando se trata de saber
quem é o homem que será papa,
sucessor de uma linhagem que
marcou a história, líder religioso
de milhões de pessoas no mundo
inteiro.
Foi uma tarefa profissional. Era
editor de uma revista, havia feito
a cobertura de alguns episódios
da política internacional. Para
melhor deslocamento no território europeu, levado pela mão
amiga de Araújo Neto, credenciei-me junto à Associazione della
Stampa Estera, ali quase na praça
São Silvestre, em Roma. Era tempo das brigadas vermelhas, do seqüestro e assassinato de Aldo Moro, da eleição e morte de João
Paulo 1º, entre outros episódios
menores.
Para quem não sabe, cobrir
acontecimentos dessa natureza é
relativamente fácil. Na maioria
das vezes, basta ficar na mesa de
um bar, como Hemingway durante a Segunda Guerra, ou dormindo numa barraca da retaguarda, como Rubem Braga, segundo atesta Joel Silveira, outro
correspondente da mesma guerra, que, aliás, fazia coisa igual.
Seguindo a regra, fiz a maior
parte das coberturas no quarto de
um hotel, vendo TV, lendo jornais, eventualmente entrevistando um personagem que desse sopa. A rotina mudou quando foi
anunciada a primeira vinda de
João Paulo 2º ao Brasil, em 1980.
Pediram-me uma edição especial,
antecipada à visita.
Cheguei a Roma levando exemplares daquela edição. Dom Eugênio Salles me recomendara ao
monsenhor Romeo Pancirolli, então primeiro-secretário de imprensa e porta-voz de João Paulo
2º. O monsenhor gostou do número especial, mostrou-o ao papa e
me incluiu entre os jornalistas
que viajariam com ele.
Fiz uma coisa raríssima em minha vida: por recomendação de
Arturo Mari, fotógrafo oficial do
Vaticano, filho e neto de fotógrafos que trabalharam com os últimos papas, usei terno escuro e colete, parecendo um clone do próprio Mari, que entusiasticamente
aprovou meu visual.
Ao entrar no avião, dei de cara
com monsenhor Pancirolli, que
distribuía a revista entre os cardeais e os jornalistas que integravam a comitiva. Mal me sentei na
classe econômica do DC 10 da
Allitalia, reservada à imprensa, o
porta-voz avisou que me apresentaria ao papa. Não acreditei muito.
O vôo começou no horário previsto, nem um minuto a mais ou a
menos. E -por Júpiter!- nunca
viajei em céu melhor do que céu
de brigadeiro.
Ao meio-dia, a voz do papa foi
ouvida na cabina: "Invito a tutti
a pregare il Angelus" (Convido
todos a rezar o Ângelus). Desde os
tempos de seminário que não ouvia rezarem a saudação que os religiosos fazem diariamente, ao
meio-dia e às seis da tarde: "O
Anjo do Senhor anunciou à Maria, e ela concebeu do Espírito
Santo". Afastado das preces havia
muitos anos, não rezei, mas fiquei
comovido. Pensava que ninguém
mais rezava aquela oração nem
mesmo os papas.
O vôo era longo e, depois do almoço servido a bordo, decidi dormir um pouco. Tirei o paletó e
ainda estava cochilando quando
Pancirolli me cutucou. Abri os
olhos e vi, ao meu lado, nada menos do que o papa, que estava
cumprimentando os jornalistas.
Com a cara amarrotada, fiz um
gesto para me compor, botar o
paletó. O papa travou meu braço,
dispensando-me do esforço. "Stà
bene." E, depois, como a todos os
demais colegas de vôo: "Aquele
abraço!".
Pancirolli mostrou-lhe mais
uma vez o número especial, o papa agradeceu o trabalho, perguntou onde eu havia arranjado tanto material, disse que gostara
muito. Não sei o que me deu. Por
timidez, costumo ser sóbrio quando falo com pessoas importantes e
com desconhecidos, embora o papa não fosse exatamente um desconhecido. Mas era importante
pra burro.
Disse esta coisa espantosa: "Como seria bom se fosse verdade!".
João Paulo 2º ainda segurava
meu braço e me repreendeu: "O
papa sempre diz a verdade". Para
aliviar a tensão, perguntei se ele
não me daria "aquele abraço".
Textualmente, ele disse que, além
do abraço, me daria sua bênção,
uma bênção especial, textualmente, como a revista que eu editara.
Abençoado pelo papa, fui fotografado pelo Arturo Mari, que me
repreendeu por estar só de colete.
Onze anos depois, em 1991, estava
outra vez no avião do papa que
vinha pela segunda vez ao Brasil.
Fisicamente, era outro homem:
fora baleado, tivera a vida em perigo. O porta-voz não era mais
Romeo Pancirolli, mas o médico
espanhol Joaquim Navarro-Valls,
ligado à Opus Dei.
Durante a viagem, veio apenas
uma vez falar aos jornalistas.
Uma entrevista coletiva, impessoal. Navarro-Valls encaminhava
as perguntas, o papa respondia.
Notei que sua batina branca tinha, pequenina, amarelada, a
mancha do omelete que ele comera na "prima colazione". Eu comera o mesmo omelete, que parece obrigatório no café da manhã
das viagens internacionais. Não
sujara a camisa porque sujara o
colete que o Arturo Mari mais
uma vez me obrigara a usar.
As duas manchas amareladas,
na batina branca do papa e no
meu colete escuro, valeram por
uma bênção que, sem saber, ele
novamente me dava.
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