São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Dois encontros com o papa

Não foi por gosto pessoal nem por curiosidade natural quando se trata de saber quem é o homem que será papa, sucessor de uma linhagem que marcou a história, líder religioso de milhões de pessoas no mundo inteiro.
Foi uma tarefa profissional. Era editor de uma revista, havia feito a cobertura de alguns episódios da política internacional. Para melhor deslocamento no território europeu, levado pela mão amiga de Araújo Neto, credenciei-me junto à Associazione della Stampa Estera, ali quase na praça São Silvestre, em Roma. Era tempo das brigadas vermelhas, do seqüestro e assassinato de Aldo Moro, da eleição e morte de João Paulo 1º, entre outros episódios menores.
Para quem não sabe, cobrir acontecimentos dessa natureza é relativamente fácil. Na maioria das vezes, basta ficar na mesa de um bar, como Hemingway durante a Segunda Guerra, ou dormindo numa barraca da retaguarda, como Rubem Braga, segundo atesta Joel Silveira, outro correspondente da mesma guerra, que, aliás, fazia coisa igual.
Seguindo a regra, fiz a maior parte das coberturas no quarto de um hotel, vendo TV, lendo jornais, eventualmente entrevistando um personagem que desse sopa. A rotina mudou quando foi anunciada a primeira vinda de João Paulo 2º ao Brasil, em 1980. Pediram-me uma edição especial, antecipada à visita.
Cheguei a Roma levando exemplares daquela edição. Dom Eugênio Salles me recomendara ao monsenhor Romeo Pancirolli, então primeiro-secretário de imprensa e porta-voz de João Paulo 2º. O monsenhor gostou do número especial, mostrou-o ao papa e me incluiu entre os jornalistas que viajariam com ele.
Fiz uma coisa raríssima em minha vida: por recomendação de Arturo Mari, fotógrafo oficial do Vaticano, filho e neto de fotógrafos que trabalharam com os últimos papas, usei terno escuro e colete, parecendo um clone do próprio Mari, que entusiasticamente aprovou meu visual.
Ao entrar no avião, dei de cara com monsenhor Pancirolli, que distribuía a revista entre os cardeais e os jornalistas que integravam a comitiva. Mal me sentei na classe econômica do DC 10 da Allitalia, reservada à imprensa, o porta-voz avisou que me apresentaria ao papa. Não acreditei muito.
O vôo começou no horário previsto, nem um minuto a mais ou a menos. E -por Júpiter!- nunca viajei em céu melhor do que céu de brigadeiro.
Ao meio-dia, a voz do papa foi ouvida na cabina: "Invito a tutti a pregare il Angelus" (Convido todos a rezar o Ângelus). Desde os tempos de seminário que não ouvia rezarem a saudação que os religiosos fazem diariamente, ao meio-dia e às seis da tarde: "O Anjo do Senhor anunciou à Maria, e ela concebeu do Espírito Santo". Afastado das preces havia muitos anos, não rezei, mas fiquei comovido. Pensava que ninguém mais rezava aquela oração nem mesmo os papas.
O vôo era longo e, depois do almoço servido a bordo, decidi dormir um pouco. Tirei o paletó e ainda estava cochilando quando Pancirolli me cutucou. Abri os olhos e vi, ao meu lado, nada menos do que o papa, que estava cumprimentando os jornalistas. Com a cara amarrotada, fiz um gesto para me compor, botar o paletó. O papa travou meu braço, dispensando-me do esforço. "Stà bene." E, depois, como a todos os demais colegas de vôo: "Aquele abraço!".
Pancirolli mostrou-lhe mais uma vez o número especial, o papa agradeceu o trabalho, perguntou onde eu havia arranjado tanto material, disse que gostara muito. Não sei o que me deu. Por timidez, costumo ser sóbrio quando falo com pessoas importantes e com desconhecidos, embora o papa não fosse exatamente um desconhecido. Mas era importante pra burro.
Disse esta coisa espantosa: "Como seria bom se fosse verdade!". João Paulo 2º ainda segurava meu braço e me repreendeu: "O papa sempre diz a verdade". Para aliviar a tensão, perguntei se ele não me daria "aquele abraço". Textualmente, ele disse que, além do abraço, me daria sua bênção, uma bênção especial, textualmente, como a revista que eu editara.
Abençoado pelo papa, fui fotografado pelo Arturo Mari, que me repreendeu por estar só de colete. Onze anos depois, em 1991, estava outra vez no avião do papa que vinha pela segunda vez ao Brasil. Fisicamente, era outro homem: fora baleado, tivera a vida em perigo. O porta-voz não era mais Romeo Pancirolli, mas o médico espanhol Joaquim Navarro-Valls, ligado à Opus Dei.
Durante a viagem, veio apenas uma vez falar aos jornalistas. Uma entrevista coletiva, impessoal. Navarro-Valls encaminhava as perguntas, o papa respondia. Notei que sua batina branca tinha, pequenina, amarelada, a mancha do omelete que ele comera na "prima colazione". Eu comera o mesmo omelete, que parece obrigatório no café da manhã das viagens internacionais. Não sujara a camisa porque sujara o colete que o Arturo Mari mais uma vez me obrigara a usar.
As duas manchas amareladas, na batina branca do papa e no meu colete escuro, valeram por uma bênção que, sem saber, ele novamente me dava.


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