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RODAPÉ
Bioy Casares e a máquina dos sonhos
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
S e há verdade no "ser é ser percebido", formulado pelo filósofo idealista Bispo Berkeley, o
primeiro mérito da nova e ótima
tradução de "A Invenção de Morel" (1940), livro de estréia do argentino Adolfo Bioy Casares
(1914-1999), está em devolver voz
em língua portuguesa a uma obra
essencial sob permanente risco de
desaparição, engolfada pela
opressiva sombra projetada por
Jorge Luis Borges, amigo e colaborador próximo do autor, no
território comum da mescla entre
o sonho e a realidade e do gosto
pela narrativa policial.
O volume inaugura a coleção
Prosa do Observatório, dirigida
por Davi Arrigucci Jr. e dedicada à
prosa experimental, de territórios
e gêneros diversos, mas com pontes hispano-americanas (o próximo lançamento será a coletânea
"O Cavalo Perdido e Outros Contos", de Felisberto Hernández).
Escrito em estilo claro e contido,
sob a forma do diário íntimo de
um fugitivo da Justiça venezuelana que se retira para uma ilha deserta, inóspita e malsã, ocupada
apenas por ruínas abandonadas
-uma vasta construção, uma capela e uma piscina-, o enredo de
"A Invenção de Morel" traz, de fato, inequívocos ecos dos enrodilhados labirintos borgianos.
Em um mundo esquadrinhado
pelo "aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, da imprensa, da radiotelefonia, das alfândegas", terror dos injustamente perseguidos, a solidão forçada do
protagonista leva a um tormento
que se prova o avesso do idílio
realizador de Robinson Crusoé,
mergulhando-o num torvelinho
de divisões interiores.
Na ilha, não é a dura rotina da
busca dos meios de sobrevivência
que o perturba, mas o sobressalto
de vir a ser descoberto, temor que
se aguça quando, contra todas as
chances, descobre a súbita invasão de um inexplicável bando de
veranistas, ocupando e animando
as instalações antes abandonadas.
Movido pelos impulsos contraditórios do desejo de aproximação -a ponto de apaixonar-se
pela visão repetida de uma mulher do grupo- e a necessidade
de não se fazer notar, assume o
papel de voyeur cada vez mais ousado, insinuando-se em seus aposentos e presenciando diálogos,
mas estranhamente invisível aos
olhos dos que observa.
O quebra-cabeças que desafia a
lógica e alimenta suspeitas paranóicas (um plano sofisticado para
capturá-lo), dúvidas quanto a sua
sanidade e até explicações da ordem do sobrenatural (seriam fantasmas eles ou eu?), só se resolve
quando o mentor do grupo, Morel, voluntariamente esclarece o
enigma, relacionado aos princípios de sua invenção.
Uma desilusão amorosa levou-o a criar uma máquina capaz de
registrar perenemente, numa
projeção contínua que preserva
singularidade concreta e apelo
sensível (imagem, som, tato,
odor, movimento e ambiente ao
redor) de tudo o que captura. Assim, reuniu no isolamento da ilha
um grupo escolhido a dedo para
gravá-lo, inadvertidamente, ao
longo de uma semana. Para vencer o tempo, contudo, o alto preço
a pagar é a morte -os seres vivos
perecem no processo, vítimas de
forte radiação colateral.
Num jogo de duplos e espelhos,
o narrador vê-se preso na mesma
armadilha fáustica que aprisionou Morel. Apaixonado por uma
imagem capturada, também ele
abraça o projeto mágico de converter-se em simulacro eterno, remediando a imperfeição dos fatos
pela criação. Mas as fraturas da
consciência impedem o pleno gozo da forja ficcional e a lógica hipotética não consegue se impor
inteiramente às contingências
hostis e imprevisíveis do mundo.
A voz solitária percebe-se vítima de um feitiço do tempo, convertendo um eventual cenário paradisíaco em prisão infernal. Inversão do tabu que interdita as
imagens, temendo a captura da
alma, a angústia do narrador está
na descoberta da falta de alma nas
imagens.
Admiravelmente urdido, "A Invenção de Morel" assinala o
quanto a realidade é constituída
de ilusão e a ilusão artisticamente
produzida tem peso real na constituição do modo de pensar do
homem moderno, que, mais desorientado, se abdica da multiplicação de hipóteses que a palavra
propicia ou tenta propiciar.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna
A Invenção de Morel
Autor: Adolfo Bioy Casares
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 39 (136 págs.)
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