São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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RODAPÉ

Bioy Casares e a máquina dos sonhos

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

S e há verdade no "ser é ser percebido", formulado pelo filósofo idealista Bispo Berkeley, o primeiro mérito da nova e ótima tradução de "A Invenção de Morel" (1940), livro de estréia do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), está em devolver voz em língua portuguesa a uma obra essencial sob permanente risco de desaparição, engolfada pela opressiva sombra projetada por Jorge Luis Borges, amigo e colaborador próximo do autor, no território comum da mescla entre o sonho e a realidade e do gosto pela narrativa policial.
O volume inaugura a coleção Prosa do Observatório, dirigida por Davi Arrigucci Jr. e dedicada à prosa experimental, de territórios e gêneros diversos, mas com pontes hispano-americanas (o próximo lançamento será a coletânea "O Cavalo Perdido e Outros Contos", de Felisberto Hernández).
Escrito em estilo claro e contido, sob a forma do diário íntimo de um fugitivo da Justiça venezuelana que se retira para uma ilha deserta, inóspita e malsã, ocupada apenas por ruínas abandonadas -uma vasta construção, uma capela e uma piscina-, o enredo de "A Invenção de Morel" traz, de fato, inequívocos ecos dos enrodilhados labirintos borgianos.
Em um mundo esquadrinhado pelo "aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, da imprensa, da radiotelefonia, das alfândegas", terror dos injustamente perseguidos, a solidão forçada do protagonista leva a um tormento que se prova o avesso do idílio realizador de Robinson Crusoé, mergulhando-o num torvelinho de divisões interiores.
Na ilha, não é a dura rotina da busca dos meios de sobrevivência que o perturba, mas o sobressalto de vir a ser descoberto, temor que se aguça quando, contra todas as chances, descobre a súbita invasão de um inexplicável bando de veranistas, ocupando e animando as instalações antes abandonadas.
Movido pelos impulsos contraditórios do desejo de aproximação -a ponto de apaixonar-se pela visão repetida de uma mulher do grupo- e a necessidade de não se fazer notar, assume o papel de voyeur cada vez mais ousado, insinuando-se em seus aposentos e presenciando diálogos, mas estranhamente invisível aos olhos dos que observa.
O quebra-cabeças que desafia a lógica e alimenta suspeitas paranóicas (um plano sofisticado para capturá-lo), dúvidas quanto a sua sanidade e até explicações da ordem do sobrenatural (seriam fantasmas eles ou eu?), só se resolve quando o mentor do grupo, Morel, voluntariamente esclarece o enigma, relacionado aos princípios de sua invenção.
Uma desilusão amorosa levou-o a criar uma máquina capaz de registrar perenemente, numa projeção contínua que preserva singularidade concreta e apelo sensível (imagem, som, tato, odor, movimento e ambiente ao redor) de tudo o que captura. Assim, reuniu no isolamento da ilha um grupo escolhido a dedo para gravá-lo, inadvertidamente, ao longo de uma semana. Para vencer o tempo, contudo, o alto preço a pagar é a morte -os seres vivos perecem no processo, vítimas de forte radiação colateral.
Num jogo de duplos e espelhos, o narrador vê-se preso na mesma armadilha fáustica que aprisionou Morel. Apaixonado por uma imagem capturada, também ele abraça o projeto mágico de converter-se em simulacro eterno, remediando a imperfeição dos fatos pela criação. Mas as fraturas da consciência impedem o pleno gozo da forja ficcional e a lógica hipotética não consegue se impor inteiramente às contingências hostis e imprevisíveis do mundo.
A voz solitária percebe-se vítima de um feitiço do tempo, convertendo um eventual cenário paradisíaco em prisão infernal. Inversão do tabu que interdita as imagens, temendo a captura da alma, a angústia do narrador está na descoberta da falta de alma nas imagens.
Admiravelmente urdido, "A Invenção de Morel" assinala o quanto a realidade é constituída de ilusão e a ilusão artisticamente produzida tem peso real na constituição do modo de pensar do homem moderno, que, mais desorientado, se abdica da multiplicação de hipóteses que a palavra propicia ou tenta propiciar.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna

A Invenção de Morel
    
Autor: Adolfo Bioy Casares Tradução: Samuel Titan Jr. Editora: Cosacnaify Quanto: R$ 39 (136 págs.)



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