São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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O LIVRO

Diretor faz leitura selvagem

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Dos três grandes livros que Glauber Rocha (1939-81) escreveu sobre seu meio de expressão -"Revisão Crítica do Cinema Brasileiro", "Revolução do Cinema Novo" e "O Século do Cinema"-, este último, publicado postumamente em 1983, é o mais variado e de amplo alcance.
Reunindo artigos, ensaios e críticas escritos por Glauber desde os 17 anos até poucos meses antes de sua morte, o livro se divide em três grandes blocos: "Hollywood", "Neo-Realismo" e "Nouvelle-Vague".
A nova e caprichada edição inclui um luminoso prefácio de Ismail Xavier e fortuna crítica com textos de Rogério Sganzerla e Paulo Leminski, entre outros.

Crítica e celebração
Na primeira parte, o cineasta baiano passa pela lâmina afiada de sua crítica o cinema clássico americano (Griffith, Ford, Wyler), cria seu panteão de inovadores (Chaplin, Welles, Kubrick) e esculhamba, com toda a petulância de sua juventude, monstros sagrados como Kazan, Hitchcock e Brando.
O eventual sectarismo da abordagem não obscurece a agudeza da percepção do jovem crítico e muito menos a força de sua paixão. Chamam a atenção as relações inesperadas que Glauber encontra entre a iconografia do western e a da juventude transviada dos anos 50.
É curioso, igualmente, o contraponto que ele faz entre a figura de James Dean e a de Marlon Brando, exaltando o primeiro para execrar o segundo.
A parcialidade extrema e a divisão do mundo entre o certo (o revolucionário, o íntegro) e o errado (o reacionário, o mistificador) são traços permanentes da atividade crítica de Glauber. Ele chamava a isso de dialética, mas talvez tivesse mais a ver com o maniqueísmo de sua formação protestante.
Um dos textos mais divertidos e fascinantes do primeiro bloco é uma carta, publicada na revista "Status", em que Glauber relata a Paulo Francis sua temporada em Nova York, em 1968.
Tudo o que ocorria então na metrópole americana, do Living Theatre ao "free jazz", do cinema "underground" à boemia hippie do Village, passa pelo crivo antropofágico do cineasta. Com direito a observações sagazes como esta: "Do que me foi dado perceber, os americanos são fanáticos pra burro e o protestantismo do Velho Testamento é responsável por muita deformação purificadora homicida".

Prosa vulcânica
Mas é na segunda parte do livro que se encontram os textos de maior profundidade crítica e de maior relevância para a compreensão do próprio cinema de Glauber Rocha.
O núcleo desse bloco é o neo-realismo, mas a análise se estende a Eisenstein, Buñuel, Visconti, Antonioni, Fellini, Bergman, Pasolini. É aí que se encontram os grandes casos de amor e ódio do autor baiano, numa prosa vulcânica que ignora as fronteiras entre a dimensão intelectual, a afetiva e a erótica.
Merece destaque a evolução da apreciação de Fellini por Glauber. Anos depois de ter tachado o diretor de "A Doce Vida" de "moralista e provinciano", o brasileiro passa a considerá-lo "o maior pintor móvel do século".
Entre um momento e outro, Glauber empreende uma espécie de psicanálise selvagem do cineasta italiano.
A última parte do livro foi escrita sob o signo de Godard e mostra o quanto o diretor de "Acossado" influenciou as idéias de cinema de Glauber.
No todo, é um livro irregular, vivo, inquieto e inesgotável -exatamente como seu autor.


O Século do Cinema
    
Autor: Glauber Rocha
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 69 (416 págs.)



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