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ERUDITO/CRÍTICA
Orchestre de Chambre se apresenta no teatro Cultura Artística tocando Haydn, Mozart e Beethoven
Visões do profeta Zacharias em Lausanne
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Existem músicos assim: concentram tanta música por
dentro que sobra, naturalmente,
para os outros. Têm uma fluência
que se confunde com inevitabilidade, uma segurança que transforma o que há de mais raro em
obviedade -como se não houvesse outro jeito de tocar. É o caso
do pianista e regente Christian
Zacharias, que se apresentou anteontem no teatro Cultura Artística com a Orchestre de Chambre
de Lausanne. E faz última apresentação hoje.
Regente também, mas pianista
em primeiro lugar: e o melhor da
noite foi o "Concerto nš 2" para
piano e orquestra, de Beethoven
(1770-1827). O melhor nem sempre é o mais vistoso. Exemplo: as
escalas e arpejos, o "enchimento"
que faz papel de transição, tantas
vezes, entre motivos e temas e desenvolvimentos. Zacharias transforma água em vinho -não era
esse o milagre? Faz cada escala
ressoar de segredos, transparentes, mas impossíveis de reproduzir. Tanto maior o impacto, inclusive visual, de vê-lo saltar a toda
hora do banco do piano para reger a orquestra. Ou reger sentado
mesmo, com as mãos e a cabeça.
Rege bonito? Não. Então com
muita técnica? Pelo contrário.
Mas o que é "técnica" para quem
faz a música acontecer?
O "Concerto nš 2" foi, na verdade, o primeiro a ser composto por
Beethoven, em fins da década de
1780. Foi revisto quatro vezes, em
1793, 95, 98 e, finalmente, em 1801.
A hesitação se explica, sonoramente, quando se escuta o quanto
de Mozart (1756-91) ainda domina a imaginação do sucessor. Mas
Zacharias fez dele uma linda
afronta à memória do modelo.
Assim como fez a abertura das
"Bodas de Fígaro", no bis, ecoar a
energia da "Sinfonia nš 2" de Beethoven (que é a segunda mesmo,
também de 1801). São as alegrias
da influência.
Para compor o painel completo
era preciso Haydn (1732-1809)
-de quem eles tocaram o "Noturno nš 1", no início. Menos noturno do que matinal, exceto no
"Presto", que é uma pequena máquina perfeita, cheia de graça, que
vem e que passa, e sem nenhuma
preocupação de ser a coisa mais
linda que a gente já viu passar.
Mas Haydn é sempre uma escola,
e sempre um prazer.
A orquestra vem da Suíça francesa, mas toca à maneira alemã.
Em todos os sentidos: do jeito de
segurar o arco do contrabaixo ao
som dos metais, do espírito irônico até certa ingenuidade, ou expressão direta dos violinos. Tudo
muito exposto, para o bem ou para o mal, como nos filmes de Fassbinder e Von Trotta. Não é uma
orquestra dos sonhos, nem de
"Cidade dos Sonhos"; não é daquelas que faz a gente chegar em
casa correndo, tomar banho às
pressas e se arrumar a jato, comer
uma fatia de queijo sem mastigar,
pegar o carro com a gasolina na
reserva, enfrentar o trânsito malévolo da cidade, se arriscar pelas
catacumbas do estacionamento
na praça Roosevelt, chegar ao teatro afoito e desabar, afinal, aliviado, na cadeira, para ouvir. Mas toca honestamente; e isso faz bem.
Adivinha quem desafinou? Elas.
As de sempre. As impossíveis. As
adoráveis. As caprichosas trompas, ninfas da imperfeição e do
ideal.
Resumo do concerto: Haydn
amava Mozart que amava Beethoven que não amava ninguém.
Não tinha tempo para essas coisas. Seu reino é demais desse
mundo, que ele não cansa de reformar, conforme as lições transparentes, mas impossíveis de repetir, do profeta e do pianista Zacharias.
Orchestre de Chambre de
Lausanne
Regente: Christian Zacharias
Programa: obras de Mozart, Schubert
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor
Pestana, 196, SP, tel. 0/xx/11/3256-0223)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 80 a R$ 160
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