São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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DRAUZIO VARELLA

Planejamento familiar

No Brasil, planejamento familiar é privilégio exclusivo dos bem-aventurados. Embora o tema já tenha sido abordado mais de uma vez nesta coluna, volto a ele por não me conformar com nosso silêncio diante do drama dos que não têm acesso aos métodos anticoncepcionais.
Sem mencionar números desta vez, vou resumir o atoleiro ideológico em que estamos metidos nessa área.
Até a metade do século 20, poucas famílias brasileiras deixavam de ter cinco ou seis filhos. Havia uma lógica razoável por trás de taxas de natalidade tão altas:
1) A maioria da população vivia no campo, numa época de agricultura primitiva em que as crianças pegavam no cabo da enxada já aos sete anos. Quantos mais braços disponíveis houvesse na família, maior a probabilidade de sobrevivência.
2) Convivíamos com taxas de mortalidade infantil inaceitáveis para os padrões atuais. Ter perdido dois ou três filhos era rotina na vida das mulheres com mais de 30 anos.
3) Além da cirurgia e dos preservativos de barreira, não existiam recursos médicos para evitar a concepção.
Na década de 1960, quando as pílulas anticoncepcionais surgiram no mercado e a migração do campo para a cidade tomou vulto, uma esdrúxula associação de forças se opôs terminante ao planejamento familiar no país: os militares, os comunistas e a igreja católica.
Os militares no poder eram contrários, por julgarem defender a soberania nacional: num país de dimensões continentais, quanto mais crianças nascessem, mais rapidamente seriam ocupados os espaços disponíveis no Centro-Oeste e na floresta amazônica. Os comunistas e a esquerda simpatizante, por defenderem que o aumento populacional acelerado aprofundaria as contradições do capitalismo e encurtaria caminho para a instalação da ditadura do proletariado. A igreja, por considerar antinatural -portanto, contra a vontade de Deus- o emprego de métodos contraceptivos.
O resultado dessas ideologias insensatas não poderia ter sido mais desastroso: em 1970, éramos 90 milhões; hoje, temos o dobro da população, parte expressiva da qual aglomerada em favelas e na periferia das cidades. Suécia, Noruega e Canadá conseguiriam oferecer os mesmos níveis de atendimento médico, de educação e de salários para os aposentados, caso tivessem duplicado seus habitantes nos últimos 30 anos?
O que mais assusta, entretanto, não é havermos chegado à situação dramática em que nos encontramos; é não adotarmos medidas para remediá-la. Pior, é ver não apenas os religiosos, mas setores da intelectualidade considerarem politicamente incorreta qualquer tentativa de estender às classes mais desfavorecidas o acesso aos métodos de contracepção fartamente disponíveis a quem pode pagar por eles.
Recentemente, um de nossos ministros da área social, ao assumir, afirmou que programas de planejamento familiar eram desprovidos de prioridade no atual governo, porque as taxas de natalidade estavam caindo e o país era tão grande que tecnicamente poderia dar guarida a 350 milhões de habitantes.
Não haveria por que discutir semelhante opinião, tivesse ela sido externada por alguém despreocupado em avaliar quantos miseráveis surgiriam, e se não fosse representativa de uma ala influente do pensamento político. De fato, as taxas médias de natalidade brasileiras têm caído gradativamente nos últimos 50 anos, mas não há necessidade de consultar os números do IBGE para constatarmos que a queda foi muito mais acentuada nas classes média e alta: basta ver a fila de adolescentes grávidas à espera de atendimento nos hospitais públicos ou o número de crianças pequenas nos bairros mais pobres.
Outra justificativa para a falta de políticas públicas destinadas a universalizar o direito ao planejamento familiar no país é a da má distribuição de renda: o problema não estaria no número de filhos, mas na falta de dinheiro para criá-los, argumentam.
De fato, se nossa renda per capita fosse a dos canadenses, a situação seria outra; aliás, talvez tivéssemos que organizar campanhas para estimular a natalidade. O problema é justamente porque somos um país cheio de gente pobre, e educar filhos custa caro. Como dar escola, merenda, postos de saúde, remédios, cesta básica, habitação, para esse exército de crianças desamparadas que nasce todos os dias? Quantas cadeias serão necessárias para enjaular os malcomportados?
A verdade é que, embora a sociedade possa ajudar, nessa área dependemos de políticas públicas, portanto dos políticos, e estes morrem de medo de contrariar a igreja. Agem como se o planejamento familiar fosse uma forma de eugenia para nos livrarmos dos indesejáveis, quando se trata de uma aspiração legítima de todo cidadão. As meninas mais pobres, iletradas, não engravidam aos 14 anos para viver os mistérios da maternidade; a mãe de quatro filhos, que mal consegue alimentá-los, não concebe o quinto só para vê-lo sofrer.
É justo oferecer vasectomia, DIU, laqueadura e vários tipos de pílulas aos que estão bem de vida, enquanto os mais necessitados são condenados aos caprichos da natureza na hora de planejar o tamanho de suas famílias?


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