São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 2006

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ANÁLISE

"Grande Sertão: Veredas" nunca termina

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Grande Sertão: Veredas" é a epopéia de um jagunço, Riobaldo, atravessando o sertão mineiro para combater seu maior inimigo, Hermógenes; seu pacto com o diabo; seu amor por Diadorim. É também uma epopéia da língua portuguesa, que nos transforma em heróis épicos e trágicos de uma outra aventura: a do espanto com uma língua que é nossa, mas que é também desconhecida. Uma prima distante e próxima a quem nos sentimos estranhamente familiares.
Não sei se o fato de "Grande Sertão: Veredas" ter sido escrito em português e, por essa razão, não figurar nas listas dos melhores romances do século 20, representa um mal ou um bem. Porque assim o ciúme que nós, como brasileiros, devemos sentir por esse livro, fica bem mais preservado. Ficamos com esse segredo. São as listas que não o merecem.
Ciúme vem do latim "zelúmen", do qual também deriva a palavra zelo, cuidado. E é isso o que o "Grande Sertão" provoca. É preciso lê-lo zelosamente e cuidar de frases como: "Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar" ou então "A colheita é comum, mas o capinar é sozinho". Talvez fosse preciso guardar essas frases numa gaveta, escondidas, e só olhar para elas de vez em quando, em silêncio.
"Grande Sertão" começa com um travessão e termina com o sinal do infinito, ou melhor, nunca termina. O livro é mesmo isso: a fala infinda e infinita de Riobaldo, personagem que, segundo Vargas Llosa, tem "alguma coisa de um paladino de romance de cavalaria, de um mosqueteiro romântico e de um aventureiro de faroeste". Mas ele também não é nada disso; é um sábio amante e melancólico, um perguntador aflito querendo conhecer a natureza do bem e do mal. E como sempre em Guimarães Rosa, o que mais se aprende para quem aprende muito, é só a "se fazer outras maiores perguntas". O travessão que abre o livro indica um diálogo que acontece com um interlocutor invisível, supostamente alguém letrado, que sabe as respostas às perguntas de Riobaldo, já que estudou. Ele certamente é cada um de nós, que se debruça sobre a leitura de um livro como esse. Mas não é difícil concluir que nós também nada sabemos. Nós só não conhecemos as respostas de uma forma mais refinada do que Riobaldo não sabe. Ser letrado, diante dessa narrativa é um não saber mais gabaritado. E diante de questões como quem é Deus e quem é o Diabo, nem a fé nem a descrença podem auxiliar muito. Quem muito auxilia nessa nossa ignorância é aquela que atravessa e sustenta o Grande Sertão, ora nos ninando ora nos chicoteando: a linguagem. É ela que atravessa o intransponível do que a inteligência não alcança e nos leva para além do que se pode pensar. É com ela que Rosa inventa frases como "Era o o", assim fazendo entender a concretude do "que não tem nome" ou "A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero".
É isso. O sinal do infinito e a palavra "travessia", que fecham a narrativa, "transtrazem" a esperança de sempre poder recomeçar a leitura e de ler o livro como se fosse a primeira vez.


Noemi Jaffe é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra)


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