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ANÁLISE
"Grande Sertão: Veredas" nunca termina
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Grande Sertão: Veredas" é a epopéia de um jagunço, Riobaldo, atravessando o
sertão mineiro para combater seu
maior inimigo, Hermógenes; seu
pacto com o diabo; seu amor por
Diadorim. É também uma epopéia da língua portuguesa, que
nos transforma em heróis épicos e
trágicos de uma outra aventura: a
do espanto com uma língua que é
nossa, mas que é também desconhecida. Uma prima distante e
próxima a quem nos sentimos estranhamente familiares.
Não sei se o fato de "Grande Sertão: Veredas" ter sido escrito em
português e, por essa razão, não
figurar nas listas dos melhores romances do século 20, representa
um mal ou um bem. Porque assim o ciúme que nós, como brasileiros, devemos sentir por esse livro, fica bem mais preservado. Ficamos com esse segredo. São as
listas que não o merecem.
Ciúme vem do latim "zelúmen",
do qual também deriva a palavra
zelo, cuidado. E é isso o que o
"Grande Sertão" provoca. É preciso lê-lo zelosamente e cuidar de
frases como: "Querer o bem com
demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o
mal por principiar" ou então "A
colheita é comum, mas o capinar
é sozinho". Talvez fosse preciso
guardar essas frases numa gaveta,
escondidas, e só olhar para elas de
vez em quando, em silêncio.
"Grande Sertão" começa com
um travessão e termina com o sinal do infinito, ou melhor, nunca
termina. O livro é mesmo isso: a
fala infinda e infinita de Riobaldo,
personagem que, segundo Vargas
Llosa, tem "alguma coisa de um
paladino de romance de cavalaria,
de um mosqueteiro romântico e
de um aventureiro de faroeste".
Mas ele também não é nada disso;
é um sábio amante e melancólico,
um perguntador aflito querendo
conhecer a natureza do bem e do
mal. E como sempre em Guimarães Rosa, o que mais se aprende
para quem aprende muito, é só a
"se fazer outras maiores perguntas". O travessão que abre o livro
indica um diálogo que acontece
com um interlocutor invisível, supostamente alguém letrado, que
sabe as respostas às perguntas de
Riobaldo, já que estudou. Ele certamente é cada um de nós, que se
debruça sobre a leitura de um livro como esse. Mas não é difícil
concluir que nós também nada
sabemos. Nós só não conhecemos
as respostas de uma forma mais
refinada do que Riobaldo não sabe. Ser letrado, diante dessa narrativa é um não saber mais gabaritado. E diante de questões como
quem é Deus e quem é o Diabo,
nem a fé nem a descrença podem
auxiliar muito. Quem muito auxilia nessa nossa ignorância é aquela que atravessa e sustenta o Grande Sertão, ora nos ninando ora
nos chicoteando: a linguagem. É
ela que atravessa o intransponível
do que a inteligência não alcança e
nos leva para além do que se pode
pensar. É com ela que Rosa inventa frases como "Era o o", assim fazendo entender a concretude do
"que não tem nome" ou "A vida é
ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio
do fel do desespero".
É isso. O sinal do infinito e a palavra "travessia", que fecham a
narrativa, "transtrazem" a esperança de sempre poder recomeçar
a leitura e de ler o livro como se
fosse a primeira vez.
Noemi Jaffe é escritora e professora de
literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas
Pequenas" (Hedra)
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