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CONTARDO CALLIGARIS
Solidariedade a Ronaldo e Hemingway
É difícil ser homem, sobretudo quando a virilidade é imposta e carregada como bandeira
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A ILUSTRAÇÃO da coluna de Ancelmo Gois, no "Globo" da segunda-feira passada, era a fotografia de uma "faixa de solidariedade" a Ronaldo, pendurada perto
do túnel Zuzu Angel, no pé da favela
da Rocinha, no Rio de Janeiro. A faixa dizia assim: "Ronaldo, a Rocinha
acredita na sua inocência, você sempre será nosso Fenômeno".
De que inocência se trata? Afinal,
Ronaldo não é acusado de crime nenhum. Segundo a versão inicial dos
travestis com quem ele foi para um
motel da Barra, ele não teria aceito
pagar o combinado e teria encomendado droga para apimentar o encontro. Mas duvido que os autores da
faixa pensassem nessas eventuais
"culpas" do jogador.
Igual, mesmo se uma parte qualquer da dita versão fosse verídica,
por que Ronaldo deixaria de ser o
Fenômeno? Isso não deveria depender de sua atuação no campo?
O jeito de entender a inscrição do
túnel Zuzu Angel parece ser o seguinte: ao levar um travesti para um
motel, o jogador teria comprometido sua própria imagem ideal aos
olhos dos autores da faixa.
Para eles, o Fenômeno não é só jogador de futebol, ele é também o
macho ideal; a fim de continuar
acreditando nesse ideal, eles precisam proclamar a "inocência" de Ronaldo, ou seja, por exemplo, acreditar que, se o jogador escolheu um
travesti, foi por engano.
Acabo de ler "Strange Tribe" (estranha tribo -uma tradução em
português seria bem-vinda), de
John Hemingway, neto do escritor
Ernest Hemingway. O livro está
sendo transformado numa ópera,
com libreto do próprio autor e direção de Gerald Thomas (mais informações em
www.geraldthomas.blog.uol.com.br).
John Hemingway conta como
ele conseguiu se salvar da espécie
de maldição que assolou a linhagem dos Hemingway: suicídios (a
começar pelo pai de Ernest e pelo
próprio Ernest) e psicose maníaco-depressiva. Em Gregory Hemingway, pai de John e filho de Ernest,
as oscilações entre depressões profundas e crises maníacas eram
complicadas por uma constante incerteza da identidade de gênero.
Gregory se sentia melhor quando se vestia de mulher. Essa fascinação pela identidade feminina
não implicava um desejo homossexual. Gregory não parava de se
apaixonar por mulheres e de cultuar os traços mais óbvios da masculinidade americana (assim como
ela havia sido inventada, aliás, por
Ernest, seu pai). Gregory amava
caçar búfalos e elefantes na África
e viver na natureza selvagem do
Estado de Montana (onde, ao mesmo tempo, vestido de mulher,
aventurava-se pelos bares).
Já na terceira idade, Gregory
quis se tornar mulher.
Passou um tempo com o implante de um seio só; aliás, casou-se, pela quarta vez, em 1992, durante essa fase, já transformado parcialmente em mulher (imagem exemplar de uma divisão impossível de
ser resolvida).
Em 1995, Gregory completou as
cirurgias necessárias para mudar
de sexo. Não por isso ele terminou
seu casamento.
Ao longo do livro, John Hemingway descobre que a estranha divisão de seu pai já estava em Ernest,
o escritor, seu avô. Ernest aparece
vestido de menina em fotos de sua
infância, e há, na obra do grande
escritor, passagens tocantes em
que um homem e uma mulher que
se amam são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua amada.
Ernest Hemingway fez de sua vida uma espécie de protótipo de hipervirilidade (boxeador, voluntário na Primeira Guerra, correspondente na Guerra da Espanha e na
Segunda Guerra Mundial, aficionado por touradas, caçador, bebedor, pescador de alto-mar, sempre
apaixonado por mais uma mulher).
Talvez seu show de virilidade
fosse uma maneira de conter a fascinação pela feminilidade. Ou talvez sua androginia íntima fosse
uma maneira de fugir da mascarada masculina que havia erigido em
regra de vida e em ideal literário.
Seja como for, o livro de John
Hemingway é uma leitura imperdível para quem queira entender
um pouco a complexidade da identidade de gênero. Mas, antes disso,
é um extraordinário documento
sobre a dificuldade de ser homem,
sobretudo quando a identidade
masculina se torna uma bandeira
ou, como no caso de Gregory, é
transmitida e imposta como uma
bandeira.
A história dos Hemingway não
tem nada a ver com o episódio de
Ronaldo. Mas "ser Hemingway" ou
ser "um Hemingway" deve ser tão
difícil quanto ser "o Fenômeno" da
faixa solidária do túnel Zuzu Angel.
ccalligari@uol.com.br
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