Em filme premiado, diretor reinterpreta com brilho tema já explorado no cinema

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Uma impressão de "já vi esse filme" parece inevitável diante de "Desejo e Perigo", sulfuroso título dirigido pelo sino-americano Ang Lee em seguida ao provocativo "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005).
De fato, há muitas semelhanças dessa mistura de paixões políticas e sexuais com o rocambolesco em tempos de guerra visto em "A Espiã", de Paul Verhoeven, ou com a crueza do desejo retratada por Bertolucci em "O Último Tango em Paris". Sem falar nas centenas de filmes hollywoodianos originais dos anos 30/40 ou que tentam emular aquela época em figurinos, cenários e climas.
De Greta Garbo a Madonna, passando por Marlene Dietrich, Ingrid Bergman ou Nicole Kidman, é infindável o número de estrelas que já vimos em episódios em que se misturam amor e risco de morte.
Nada de novo, portanto, nem de original parece haver na abordagem que Ang Lee faz do envolvimento de uma jovem espiã e um político colaboracionista na Hong Kong e Xangai sob domínio japonês. O que fez muita gente considerar um exagero os dois Leões de Ouro dados ao cineasta asiático pelo Festival de Veneza por duas obras consecutivas.
Contudo, como em toda a filmografia do diretor, interessa menos a novidade e mais os resultados da apropriação que Lee faz de códigos e gêneros já muito reciclados.
De maneira aparentemente despretensiosa, seus filmes saltam da crônica multicultural ao drama literário de prestígio, do cinema de ação oriental à adaptação de uma história em quadrinhos, sem deixar de lado o suposto universo do faroeste.
O deslocamento incessante de gêneros e temas sugere não tanto uma personalidade indecisa quanto uma força obsessiva de reinterpretação, capaz de inocular códigos cristalizados com outros vírus e transformar o costumeiro em mutante.
Daí a confusão provocada no público que reage de modo estranho a um Hulk tingido de um verde demasiado psicanalítico ou a uma dupla de caubóis apaixonados.
Apesar de a política ser o motor que envolve seus personagens, é a torrente física que os faz perder a cabeça. Por isso, as cenas fortes do filme, daquelas que nos fazem saltar na cadeira, são embates corpóreos, uma durante uma morte, as outras, atos sexuais de tirar o fôlego.
Como sua protagonista (a estreante Tang Wei, um talento assombroso), "Desejo e Perigo" também é um filme de duas caras. Portanto, cuidado!