São Paulo, sexta, 15 de maio de 1998

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MÚSICA
Wayne Kramer


O ex-guitarrista do lendário quinteto MC5 lança no país o CD "Citizen Wayne"; em entrevista exclusiva à Folha, ele fala sobre o novo trabalho, o tempo em que passou preso e comenta os três discos clássicos de sua antiga banda


FÁBIO MASSARI
especial para a Folha

Algumas boas famílias do rock'n'roll estão em festa. Do tipo barulhenta, apaixonada. E do tipo que apavora a maioria dos vizinhos, principalmente os desavisados de plantão. Wayne Kramer comemorou recentemente 50 anos de vida. E que vida...
Na virada dos anos 60 para os 70, a América -das flores no cabelo, do tablete sob a língua, dos mortos ensacados no Vietnã, das tretas raciais, da bandalheira política- foi literalmente tomada de assalto por um protótipo de guerrilha urbana que fazia sua pregação e despejava sua artilharia em ritmo de rock.
Com propulsão sônica assustadora, motor de uma simbiose maluca de soul libidinoso, funkão da pesada e emulação desgovernada da liberdade jazzística, o MC5 "explodiu" no cenário da cultura rock da época.
Mas o "acontecimento" do MC5 não foi garantia de mar de rosas para seus integrantes. Muito pelo contrário. Principalmente para um dos responsáveis pela "rifferama" do grupo, o guitarrista Wayne Kramer.
Quando o MC5 se despedaçou no começo dos anos 70, Kramer, 20 e poucos anos, deu início a sua turnê pelo inferno, sozinho, desempregado e na ressaca perigosa dos excessos de uma estrada sinuosa. Tombou em uma armação policial. Vendeu cocaína para um agente da polícia, declarou-se culpado e ficou dois anos preso.
Ao sair, trombou de frente com o ex-guitarrista do New York Dolls, Johnny Thunders. Juntos formaram o Gangwar, e Kramer viu de novo o abismo.
Com Thunders descontrolado, Kramer, em liberdade condicional, vivia o horror, a paranóia. Parecia ouvir o tenebroso e angustiante chamado das profundezas. Saiu andando e partiu para a briga com seus demônios.
Tocou com algumas formações discretas, colaborou com os conterrâneos do Was (Not Was), restabeleceu conexões antigas (inclusive com o ex-empresário e mentor do MC5, John Sinclair) e, em plena década de 90, na rebordosa da situação pós-Nirvana, se levantou para mais um combate, com disposição e alegria invejáveis.
De um par de anos para cá, lançou três discos pelo selo californiano Epitaph. O terceiro, "Citizen Wayne", está sendo lançado no Brasil (leia texto ao lado). Já está com um quarto disco (ao vivo) pronto para o selo, que deve ser lançado em agosto.
Kramer é simpático, fala pausadamente e ri muito das suas próprias tiradas. Ele falou de sua casa, em Los Angeles, com exclusividade para a Folha. O irmão Wayne Kramer está de volta com a bola toda e diz querer vir ao Brasil de qualquer maneira.

Folha - O disco "Citizen Wayne" é um dos grandes da sua carreira e certamente seu trabalho mais autobiográfico.
Wayne Kramer -
Tentei contar um pouco da história, como é viver a vida louca de Wayne Kramer, dos tempos do MC5 em diante, e mostrar como é fazer esse trabalho hoje, adulto, com a mesma paixão e com um sentido para tudo isso. Parte do meu trabalho é contar essa história.
Folha - Dos discos lançados pela Epitaph, "Citizen Wayne" é o mais aberto a explorações sonoras.
Kramer -
Com certeza é muito mais a viagem do que o destino final. É disparar a música que eu amo e os sons que me apaixonam.
Folha - A faixa "Down on the Ground" fala da histórica e tumultuada apresentação do MC5 na convenção do Partido Democrata, em Chicago, 1968. Como explicar a experiência de assistir ao show do MC5 ao vivo?
Kramer -
Era uma combinação de Sun Ra com James Brown, tudo em uma banda, com a pegada militante, política. Em "Down on the Ground" tentei contar a história do que aconteceu naquele dia em Chicago. As outras bandas (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Big Brother & The Holding Company) não apareceram. Tocar para a polícia de Chicago não era uma boa idéia. Acho que se tivéssemos alguma coisa na cabeça não teríamos tocado. Mas éramos de Detroit, fazíamos aquilo todo dia.
Folha - Em "Count Time" você fala da prisão, e, na hora da contagem dos presos, aparecem alguns nomes "suspeitos", como Berry, Monk, Parker, Sinclair...
Kramer -
Queria escrever uma "prison song" (música de prisão) que não fosse melodramática, mostrar que muita gente vai para a cadeia (risos). Isso não é novidade para ninguém, é só lembrar de Johnny Cash, Steve Earle, esse pessoal, ou mesmo o mais novo, como Tommy Lee (Motley Crue).
Folha - Como a experiência da prisão afetou o artista?
Kramer -
Acho que me tornei um músico melhor, porque tinha tempo para estudar. Sabia que o importante para mim era cumprir a pena, tirar o meu tempo, fazer o meu trabalho. O trabalho é a coisa mais importante nessa situação. Todas as outras coisas acabam sendo só distração (longa pausa)...
Folha - Nesses três discos recentes você trabalhou com muita gente, várias formações, do pessoal do Claw Hammer a Scott Thunes, ex-baixista de Frank Zappa.
Kramer -
Miles Davis nunca gravou com a mesma banda duas vezes. Hoje tenho uma idéia bem clara de quem sou, tenho certeza de como eu quero que as coisas soem. Há um monte de músicos com os quais eu gostaria de trabalhar. O que Zappa tinha era autodeterminação, mostrou que era possível viver em um mundo em que as pessoas ficam te perguntando "quem você pensa que é?".
Folha - Como avaliar o legado do MC5?
Kramer -
Acho que os músicos sempre respeitaram muito o MC5. O que fica é que você pode fazer alguma coisa do nada, se você acredita em algo, se você é capaz de brigar por isso. Sempre vai existir música pop ruim (risos), mas existe mais coisa ruim no mundo do que música pop ruim! A maioria das minhas lembranças é boa. Como fomos tratados pelas gravadoras, isso não é bom, mas essa é a indústria do disco, eles não se importam nem um pouco com sua cabeça, com sua música, só querem saber de empurrar discos.
Folha - O MC5 tinha na linha de frente uma das mais inacreditáveis parcerias da história da guitarra: Wayne Kramer e Fred "Sonic" Smith.
Kramer -
Foi o melhor momento musical de minha vida. Fred e eu crescemos juntos, aprendemos a tocar guitarra juntos e, na hora em que fomos tocar juntos, não dava para dizer quem estava tocando o que, liberdade musical absoluta.



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