|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O insustentável peso das palavras e das imagens
Em outubro de 1997, em
Cambridge, um menino de
10 anos, Jeffrey Curley, foi estuprado e assassinado por dois homens. Ambos estão hoje condenados e presos. Espera-se que a chave seja esquecida de vez.
O caso volta para a crônica porque os pais de Jeffrey entraram na
Justiça com uma ação civil contra
a Nambla (traduzindo: Associação Norte-Americana para o
Amor entre Homens e Meninos) e
seus animadores.
A queixa dos pais de Jeffrey
obriga a pensar seriamente numa
questão hoje crucial: qual é a responsabilidade das palavras e das
imagens públicas que parecem
inspirar um crime?
Numa manhã chuvosa, que
condizia com a tétrica lembrança
dos fatos, fui até a corte federal de
Boston para ler o texto da queixa
da família Curley.
Ela alega que Charles Jaynes, o
principal algoz de Jeffrey, "se tornou obcecado pela idéia de fazer
sexo com meninos e de estuprá-los, como resultado direto e próximo da instigação e da promoção
da atividade pedófila pela Nambla".
Foi como resultado da mesma
instigação que Jaynes abordou o
menino e "torturou, assassinou e
mutilou o corpo de Jeffrey Curley". Tanto Jaynes quanto seu
cúmplice possuíam material da
Nambla. Jaynes tinha recentemente se inscrito na associação.
Detalhe sinistro: "Imediatamente antes do ato, Charles Jaynes teve acesso ao site da Nambla
na Internet a partir da Biblioteca
Pública de Boston". Como se procurasse uma última confirmação.
A queixa apresenta algumas
publicações da Nambla para
mostrar que esta encoraja seus
membros "a estuprar meninos".
A associação pretende oficialmente promover o amor "consensual" entre homens e meninos.
Mas os documentos exalam mesmo uma hipocrisia irrespirável.
Se você tiver estômago, considere esta citação que planeja uma
expedição nos bosques com os
meninos -se não tiver, pule este
fim de parágrafo: "Aí queremos
levá-los para a barraca e beijá-los
e abraçá-los e acariciá-los e fodê-los e sentir seus pequenos corpos
quentes fremir de prazer sexual".
A Nambla não inspira simpatia. Isso me ajuda a evitar a facilidade. Em geral, nas discussões sobre a responsabilidade criminal
de imagens e de idéias que circulam na cultura e na mídia, é fácil
defender a liberdade de expressão.
No caso, os animadores da
Nambla não são necessariamente
estupradores. Mesmo que eles façam a apologia do estupro e que
sua vida sexual seja feita de masturbações com fantasias de estupro, a apologia do crime não é o
próprio crime.
Além disso, agita-se como um
espantalho a idéia de que estender a responsabilidade até os hipotéticos instigadores seria um
pretexto para o exercício ilimitado da censura.
Por esse caminho, por exemplo,
por que, junto com o Unabomber,
não seriam perseguidos os professores de Harvard que, nos anos
60, formaram a ideologia antitecnológica radical do terrorista
americano?
Ou, então, se de repente nas
praças brasileiras chover não só
ovos, mas tiros, será que quem
hoje defende a necessidade da luta armada seria perseguido ao
mesmo título do que o atirador?
Queremos esse tipo de repressão?
Claro que não.
Mas importa, enfim, admitir
que as palavras e as imagens da
mídia e da cultura influenciam
pesadamente nossos atos.
Jaynes, até descobrir a Nambla,
não manifestara nenhuma de
suas fantasias. O encontro com
essa associação lhe permitiu
transformar fantasias até então
silenciosas em planos e atos. De
alguma forma, autorizou desejos
que talvez ele nem admitisse para
si mesmo.
Mas como? Pois bem, contrariamente ao que aparece em nossas
frequentes lamentações, nós, modernos, dispomos de uma moral
comum bem compartilhada.
Concordamos facilmente sobre o
que é certo ou errado. E o fundamento desta moral comum somos
nós mesmos, nosso diálogo, nossa
comunidade.
Por exemplo, estuprar meninos
é errado porque concordamos
que é. Não porque assim diria alguma autoridade acima da gente.
Nesta situação, em que a comunidade é a fonte da autoridade
moral, é suficiente que uma opção ou uma conduta tenha destaque público para que ganhe alguma forma de legitimidade com isso.
Se algo está no cinema, na televisão, na Internet ou na imprensa, se está entre nós, se faz parte
de nosso diálogo público, então
tem algum direito de cidadania.
Que uma fantasia, uma conduta ou um desejo possam ser ditos,
narrados ou defendidos publicamente, é suficiente para autorizá-los. Na cara perplexa de cada menor preso por homicídio, por
exemplo, leio esta pergunta: "Mas
não era isso que vocês gostavam
de olhar na TV ou no cinema?".
E Jaynes, naquela última visita
ao site da Nambla, pode ter pensado: "Pois é, se a Nambla está na
Net, então dá para estuprar meninos, pois estuprar meninos é do
nosso mundo".
Eu gostaria de um mundo onde
todos, até os sinistros membros da
Nambla, pudessem, no respeito
da lei, trocar suas fantasias como
figurinhas.
Mas também onde Jeffrey ainda
pedalasse sua bicicleta tranquilo,
porque nada encorajaria dois
desgraçados a realizar suas fantasias até então inconfessáveis.
É uma contradição difícil. Talvez sem solução.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Panorâmica: Encontro na Folha, na próxima segunda, discute relações de poder no Brasil Próximo Texto: Panorâmica: Inscrições para curtas vão até hoje Índice
|