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COMENTÁRIO
A Dublin de Joyce
BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM DUBLIN
Dublin é o chofer de táxi que
pergunta quando ouve você
pigarrear: "Um sapo na garganta?". A poesia de saída, através da
metáfora saltitante do pigarro, o
sapo.
Você está no país dos bardos, e
não é por acaso que Yeats, Prêmio
Nobel de Literatura, é irlandês.
Você lembra que Bernard Shaw,
Samuel Beckett, Oscar Wilde,
além de Joyce, também o são.
Num dos centros de Dublin, em
Temple Bar, onde você desce, há
um pub ao lado do outro. Por que
não tomar uma Guinness? Você
entra e topa num homem cuja natureza não é a dos poetas. Porque
nasceu predestinado ao copo e está ali sozinho para beber. O olhar
de quem não vê o que olha, perdido. Você não entende por que o
homem bebe, porém tem certeza
pela sua seriedade que ele está
cumprindo um ritual cujo significado ele ignora. Talvez por isso
sua expressão seja sinistra e faça
pensar na história de James Joyce,
filho de John Joyce, um funcionário público rico que se entregou
ao álcool e arruinou a família -a
mulher, que ele engravidou 17 vezes, e os dez filhos que ela teve.
Em Dublin, tudo evoca Joyce,
que se exilou, mas escreveu sobre
a cidade natal nos seus livros. A
ponto de afirmar que, se Dublin
fosse destruída, poderia ser inteiramente reconstruída a partir da
sua obra. Tudo ali evoca o artista
porque a arte para ele não se separava da vida. Os lugares que Joyce
cita são lugares existentes.
Assim, a torre do primeiro capítulo de "Ulisses", onde se passa a
cena entre Stephen Dedalus, Buck
Mulligan e Haines, é Martello Tower, construída em 1804 para defender a cidade e depois transformada em 1962 no Museu de Joyce
por Sylvia Beach, editora de "Ulisses". Lá, Joyce (Dedalus) esteve
com Gogarty (Mulligan), um poeta amigo seu, e com Trench (Haines), amigo de Gogarty, que
ameaçou o escritor com um revólver, obrigando-o a se retirar.
Viveu a experiência que inspirou
o início de seu grande romance.
Outro exemplo da conexão estabelecida pelos contemporâneos
entre a obra e a vida é o James Joyce Centre, uma casa tombada porque nela morou Maginni, citado
seis vezes em "Ulisses". Um professor de dança extravagante, que
usava chapéu de seda, luvas amarelas e sapato de ponta fina.
E como Joyce é tão importante
para os irlandeses de hoje quanto
a cidade foi para ele, o J.J. Centre
organiza vários passeios nos quais
estabelece relações entre passagens dos livros e os prédios.
Quem vai a Dublin se pergunta
por que Joyce é tão popular. Sobretudo se considerar a dificuldade que o escritor teve para sobreviver e para ser publicado. "Dublinenses", que ele acabou em
1905, só foi editado por sua conta
em 1911 e a edição foi queimada
por um desconhecido antes mesmo de ser distribuída. "Ulisses",
editado em 1921 em Paris, foi imediatamente censurado na Inglaterra e nos EUA "por se tratar de
obra pornográfica". Só se consagrou mundialmente em 1933.
A resposta para a questão relativa à popularidade pode ser encontrada na vida e na obra de Joyce, cuja única moral foi a independência à imagem da Irlanda que
só pode se reconhecer nele. O escritor se valeu "do exílio, da astúcia e do silêncio" para produzir
sua catedral de prosa, com ela se
impor no mundo, se opor à Irlanda que ele não gostava e ser aceito
pelos irlandeses. Prova disso é a
festa de 16 de junho, o Bloomsday,
dia em que Joyce conheceu sua futura mulher, Nora Barnacle, e em
que Leopold Bloom vive a sua
epopéia em "Ulisses".
Nesse dia, Molly, a mulher escandalosa de Bloom, está no centro dos acontecimentos e o seu célebre monólogo é rememorado.
Porque essa personagem, como
nenhuma mulher do seu tempo,
expressou livremente o desejo do
gozo e não dissociou o sexo do
resto da vida, entregou-se ao fluxo de sua imaginação fazendo tão
pouco das convenções sexuais
quanto Joyce das convenções literárias. Molly não cantou o amor,
talvez porque na Irlanda a relação
entre homens e mulheres -sempre às voltas com o medo da concepção e a proibição do aborto-
não pudesse ser boa, mas fez a liberdade ressoar em todo o mundo, dando-nos uma possibilidade
que até então não tínhamos.
Dublin é o Liffey, um rio de
águas turvas, porém é também
um rio de palavras, cujo som interminavelmente encantatório
evoca o canto da sereia.
Betty Milan é escritora e psicanalista,
autora de "O Clarão"
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