|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Não sobre o Amor"
Montagem é uma obra-prima do encontro entre texto e companhia
SERGIO SÁLVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"Não sobre o amor"
expõe de forma
exemplar a "desfamiliarização" almejada pelo
formalista russo Victor
Shklovsky: mais que o estranhamento de Brecht, que busca
um sentido social para cada situação dramática, a técnica é
deslocar um termo de seu contexto para vê-lo melhor, a ausência revelando a essência.
Assim, fala-se do amor evitando-o -por alusões, metáforas, ironias. E não há nada de
abstrato nessa situação: em
uma circunstância típica da literatura russa, o protagonista
escreve para Alya, uma amada
inatingível, que lhe proíbe o tema. Ambos russos exilados,
ambos tímidos e solitários, são
separados pela semelhança.
Decidido a publicar as cartas,
intitulando-as uma a uma com
melancólica ironia, Victor mistura vida e ficção, forma e conteúdo. A impossibilidade de
amar é a impossibilidade de escrever, por isso a constante metalinguagem do texto.
Nada nesse exercício de tema
e variações sugeria uma adaptação para os palcos, tanto
maior é a façanha dos envolvidos. "Não sobre o Amor" é uma
obra prima do encontro.
Adotando Shklovsky, não é
uma boa peça apenas por ser da
Sutil Companhia de Felipe
Hirsch e seus virtuoses na trilha, na iluminação e na cenografia, embora retome com vigor leitmotivs essenciais, como
memória e nostalgia.
Esquece-se de que as belas
projeções que duplicam atores
e cenário são cacoete do diretor
em multimídias anteriores, já
que aqui são indispensáveis para emanar a dor da ausência,
como exige o texto.
Não é também inesquecível
apenas pela cenografia de Daniela Thomas, com cama e mesa na parede e lâmpada que se
ergue no chão como um paródico microfone, que clama confissões insones. Thomas já tinha construído algo semelhante para "Os Solitários", mas
desta vez o cubismo é matéria-prima de Shklovsky.
Por outro lado, o cenário não
desfaria nenhum sentido não
tivesse sobre ele o olhar de irônica tristeza de Leonardo Medeiros, nem seria belo sem a feroz delicadeza de Arieta Corrêa. E não bastariam eles se não
jogassem entre si em um duelo
de craques: como nos velhos filmes de capa e espada, esgrimam-se verbalmente galgando
móveis, não na ânsia de ferir,
mas pela volúpia da esquiva.
Por fim, "Não sobre o Amor"
é uma obra-prima não porque
traz luz nova para o desgastado
tema do amor. Repete o impasse inicial em grande número de
cartas, arriscando-se ao tédio.
É o próprio texto novamente
que, em metalinguagem, vem
justificar a redundância, pela
ironia. Escreve a amada: "Pare
de escrever o quanto, o quanto,
o quanto você me ama, porque
no terceiro "quanto" eu começo
a pensar em outra coisa".
Esgotados todos os clichês
sobre o amor, o amor assombra
justamente pela sua impossibilidade, revelação que se estende à existência: somos todos
exilados russos.
NÃO SOBRE O AMOR
Quando: qui. a sáb., às 19h30; dom., às
18h
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil
(r. Álvares Penteado, 112, tel. 0/xx/
11/ 3113-3651); classificação 16 anos
Quanto: R$ 15
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Fabiana Scaranzi é a nova arma na disputa pelo topo da audiência Índice
|