São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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Crítica/"Não sobre o Amor"

Montagem é uma obra-prima do encontro entre texto e companhia

SERGIO SÁLVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Não sobre o amor" expõe de forma exemplar a "desfamiliarização" almejada pelo formalista russo Victor Shklovsky: mais que o estranhamento de Brecht, que busca um sentido social para cada situação dramática, a técnica é deslocar um termo de seu contexto para vê-lo melhor, a ausência revelando a essência.
Assim, fala-se do amor evitando-o -por alusões, metáforas, ironias. E não há nada de abstrato nessa situação: em uma circunstância típica da literatura russa, o protagonista escreve para Alya, uma amada inatingível, que lhe proíbe o tema. Ambos russos exilados, ambos tímidos e solitários, são separados pela semelhança.
Decidido a publicar as cartas, intitulando-as uma a uma com melancólica ironia, Victor mistura vida e ficção, forma e conteúdo. A impossibilidade de amar é a impossibilidade de escrever, por isso a constante metalinguagem do texto.
Nada nesse exercício de tema e variações sugeria uma adaptação para os palcos, tanto maior é a façanha dos envolvidos. "Não sobre o Amor" é uma obra prima do encontro.
Adotando Shklovsky, não é uma boa peça apenas por ser da Sutil Companhia de Felipe Hirsch e seus virtuoses na trilha, na iluminação e na cenografia, embora retome com vigor leitmotivs essenciais, como memória e nostalgia.
Esquece-se de que as belas projeções que duplicam atores e cenário são cacoete do diretor em multimídias anteriores, já que aqui são indispensáveis para emanar a dor da ausência, como exige o texto.
Não é também inesquecível apenas pela cenografia de Daniela Thomas, com cama e mesa na parede e lâmpada que se ergue no chão como um paródico microfone, que clama confissões insones. Thomas já tinha construído algo semelhante para "Os Solitários", mas desta vez o cubismo é matéria-prima de Shklovsky.
Por outro lado, o cenário não desfaria nenhum sentido não tivesse sobre ele o olhar de irônica tristeza de Leonardo Medeiros, nem seria belo sem a feroz delicadeza de Arieta Corrêa. E não bastariam eles se não jogassem entre si em um duelo de craques: como nos velhos filmes de capa e espada, esgrimam-se verbalmente galgando móveis, não na ânsia de ferir, mas pela volúpia da esquiva.
Por fim, "Não sobre o Amor" é uma obra-prima não porque traz luz nova para o desgastado tema do amor. Repete o impasse inicial em grande número de cartas, arriscando-se ao tédio.
É o próprio texto novamente que, em metalinguagem, vem justificar a redundância, pela ironia. Escreve a amada: "Pare de escrever o quanto, o quanto, o quanto você me ama, porque no terceiro "quanto" eu começo a pensar em outra coisa".
Esgotados todos os clichês sobre o amor, o amor assombra justamente pela sua impossibilidade, revelação que se estende à existência: somos todos exilados russos.


NÃO SOBRE O AMOR
Quando: qui. a sáb., às 19h30; dom., às 18h
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, tel. 0/xx/ 11/ 3113-3651); classificação 16 anos
Quanto: R$ 15
Avaliação: ótimo



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