São Paulo, segunda, 15 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Candidato só fala de drogas com passaporte na mão

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha A campanha política brasileira se deslocou para a ONU. Esse deslocamento serve como um interessante psicodrama. Revela o modo de agir de nossos dois candidatos e da mídia, personagem importante da história.
O tema do confronto: política de drogas. Fernando Henrique, contrariando sua dimensão intelectual, assumiu a paranóia norte-americana e foi lá dar seu recado de soldado na guerra antidroga.
Ao seu lado, o senador Romeu Tuma, um dos conselheiros do presidente neste tema, que, no Brasil, é tratado como um caso de polícia.
No mesmo dia em que Fernando Henrique prometia uma repressão sem quartel aos traficantes, um documento assinado por 500 intelectuais criticava a atual política repressiva mundial, usando dois grandes argumentos.
Por um lado, a guerra provoca muito mais mortes do que a própria droga. Por outro, sob argumento de que há uma guerra, prepara-se o caminho para a mutilação da democracia.
Detalhe importante: Lula é um dos signatários da carta publicada no "The New York Times". Foi um momento singular para que se confrontassem visões diferentes para uma política de drogas.
O momento se perdeu, como se perdem os gols brasileiros na Copa. Digamos que o debate bateu na trave.
Por que não entrou? Parece que o Brasil ainda não reconhece a política de drogas como um tema de campanha. É algo que discutimos apenas nos encontros internacionais, algo que juntamos ao sobretudo ao cachecol e ao passaporte: só usamos no exterior.
A mídia passou como um foguete sobre o confronto. E os candidatos também. Fernando Henrique segue seu caminho conservador e cínico (porque não acredita nele), sabendo que agrada simultaneamente aos norte-americanos e à maioria dos eleitores.
Lula, que foi contemplado com uma visão alternativa, tratada com a dignidade que merece pelo "The New York Times", nem sequer se pronunciou.
O problema é que a crítica à política conservadora ainda não está sedimentada nem para o Lula nem para o PT. Todos sabem que política de drogas numa campanha eleitoral é dinamite pura -a maioria quer repressão e pune nas urnas quem não a adota.
Um dos argumentos da carta publicada pelo "NYT" é que a guerra contra as drogas tem sido pretexto para limitar a democracia. No caso brasileiro, FHC já embarcou nessa canoa e costuma anunciar, orgulhosamente, que já está preparando o caminho legal.
De fato, ele aprovou no Congresso, contra o meu voto, uma lei que permite que a Força Aérea derrube qualquer avião que não aceite a ordem de aterrissar imediatamente. O pretexto é a luta contra o tráfico de drogas.
O próprio PT votou a favor: seus deputados se destacaram na defesa da proposta presidencial.
Embora não possa dizer que estejam unidos pela mesma histeria, oposição e governo no fundo concordaram com a introdução da pena de morte no ar. Isso, na verdade, é a essência da lei que implementaram no país. Mata-se o piloto sem julgamento e, por extensão, exterminam-se todos os ocupantes da aeronave.
Aos olhos norte-americanos que cultivam a pena de morte, isso é um avanço. Aos meus olhos, um retrocesso, principalmente porque a pena de morte foi reintroduzida por uma lei simples. Nem sequer se deram ao trabalho de derrubá-la da maneira legal, isto é, reformando a Constituição.
Mas, se Lula assinou uma carta progressista, como explicar a ausência de uma diferença nítida entre oposição e governo? Só mesmo perguntando ao próprio Lula, coisa que nenhum jornalista se dignou a fazer.
Parece que o tema tem um peso tão negativo no imaginário popular, que todos querem escapar dele ou mencioná-lo apenas sob o escudo protetor de uma guerra contra as drogas, delimitando claramente em que fronteira do conflito estão situados.
O psicodrama que se desenrolou discretamente numa semana de Copa do Mundo revela bem a limitação do quadro político cultural do Brasil. Um presidente intelectualizado, fingindo que pensa exatamente como o Romeu Tuma, um candidato popular com uma filosofia avançada, mas só para a exportação, e a mídia, que passa batida pelo confronto.
No fundo, todos se movem em torno de uma lógica implacável. Fernando Henrique precisa tanto de votos quanto dos americanos. Lula precisa de votos e dos americanos progressistas. A imprensa precisa de leitores e não ousa abalar seus preconceitos.
Tudo isso é uma garantia de que o cenário não vai mudar. Numa guerra, ou se está de um lado ou se está de outro. Não há espaço para dúvidas ou hesitações. Todos são convocados para o combate.
Fora do Brasil, cresce a consciência de que a política de drogas imposta pelos Estados Unidos é um fracasso retumbante. Já se reconhece pelo menos a dignidade das posições contraditórias.
Aqui dentro, as principais televisões anunciaram que importei maconha e jamais se retrataram. Radialistas e apresentadores de programas populares estão sempre pedindo minha prisão. Guerra é guerra, dirão os realistas, escudados nas pesquisas de opinião.
No entanto Estados Unidos e a maioria dos eleitores estão trilhando um caminho equivocado. A humanidade poderia sofrer menos com o problema das drogas se o problema realmente fosse esse. O problema é essa conjunção perversa: os norte-americanos sempre necessitam de um inimigo externo. Os pais sempre necessitam de um bode expiatório para sua ausência e desamor.
Líderes como Clinton e Fernando Henrique estarão sempre aí para oferecer a saída repressiva. Clinton, embora tenha lido alguns livros, deve estar satisfeito com sua proposta. Fernando Henrique descobriu sua vocação de delegado com o mesmo apetite com que comeu buchada de bode nas últimas eleições. É capaz de jurar que, tanto a buchada quanto a política repressiva, são dois pratos finos, supervalorizados nos restaurantes de Paris.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.