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Candidato só fala de drogas com passaporte na mão
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
A campanha política brasileira se deslocou para a ONU.
Esse deslocamento serve como
um interessante psicodrama.
Revela o modo de agir de nossos dois candidatos e da mídia,
personagem importante da
história.
O tema do confronto: política
de drogas. Fernando Henrique, contrariando sua dimensão intelectual, assumiu a paranóia norte-americana e foi
lá dar seu recado de soldado
na guerra antidroga.
Ao seu lado, o senador Romeu Tuma, um dos conselheiros do presidente neste tema,
que, no Brasil, é tratado como
um caso de polícia.
No mesmo dia em que Fernando Henrique prometia
uma repressão sem quartel aos
traficantes, um documento assinado por 500 intelectuais criticava a atual política repressiva mundial, usando dois grandes argumentos.
Por um lado, a guerra provoca muito mais mortes do que a
própria droga. Por outro, sob
argumento de que há uma
guerra, prepara-se o caminho
para a mutilação da democracia.
Detalhe importante: Lula é
um dos signatários da carta
publicada no "The New York
Times". Foi um momento singular para que se confrontassem visões diferentes para uma
política de drogas.
O momento se perdeu, como
se perdem os gols brasileiros na
Copa. Digamos que o debate
bateu na trave.
Por que não entrou? Parece
que o Brasil ainda não reconhece a política de drogas como um tema de campanha. É
algo que discutimos apenas
nos encontros internacionais,
algo que juntamos ao sobretudo ao cachecol e ao passaporte:
só usamos no exterior.
A mídia passou como um foguete sobre o confronto. E os
candidatos também. Fernando
Henrique segue seu caminho
conservador e cínico (porque
não acredita nele), sabendo
que agrada simultaneamente
aos norte-americanos e à
maioria dos eleitores.
Lula, que foi contemplado
com uma visão alternativa,
tratada com a dignidade que
merece pelo "The New York Times", nem sequer se pronunciou.
O problema é que a crítica à
política conservadora ainda
não está sedimentada nem para o Lula nem para o PT. Todos sabem que política de drogas numa campanha eleitoral
é dinamite pura -a maioria
quer repressão e pune nas urnas quem não a adota.
Um dos argumentos da carta
publicada pelo "NYT" é que a
guerra contra as drogas tem sido pretexto para limitar a democracia. No caso brasileiro,
FHC já embarcou nessa canoa
e costuma anunciar, orgulhosamente, que já está preparando o caminho legal.
De fato, ele aprovou no Congresso, contra o meu voto, uma
lei que permite que a Força Aérea derrube qualquer avião
que não aceite a ordem de
aterrissar imediatamente. O
pretexto é a luta contra o tráfico de drogas.
O próprio PT votou a favor:
seus deputados se destacaram
na defesa da proposta presidencial.
Embora não possa dizer que
estejam unidos pela mesma
histeria, oposição e governo no
fundo concordaram com a introdução da pena de morte no
ar. Isso, na verdade, é a essência da lei que implementaram
no país. Mata-se o piloto sem
julgamento e, por extensão, exterminam-se todos os ocupantes da aeronave.
Aos olhos norte-americanos
que cultivam a pena de morte,
isso é um avanço. Aos meus
olhos, um retrocesso, principalmente porque a pena de
morte foi reintroduzida por
uma lei simples. Nem sequer se
deram ao trabalho de derrubá-la da maneira legal, isto é,
reformando a Constituição.
Mas, se Lula assinou uma
carta progressista, como explicar a ausência de uma diferença nítida entre oposição e governo? Só mesmo perguntando
ao próprio Lula, coisa que nenhum jornalista se dignou a
fazer.
Parece que o tema tem um
peso tão negativo no imaginário popular, que todos querem
escapar dele ou mencioná-lo
apenas sob o escudo protetor
de uma guerra contra as drogas, delimitando claramente
em que fronteira do conflito
estão situados.
O psicodrama que se desenrolou discretamente numa semana de Copa do Mundo revela bem a limitação do quadro
político cultural do Brasil. Um
presidente intelectualizado,
fingindo que pensa exatamente como o Romeu Tuma, um
candidato popular com uma
filosofia avançada, mas só para a exportação, e a mídia, que
passa batida pelo confronto.
No fundo, todos se movem
em torno de uma lógica implacável. Fernando Henrique precisa tanto de votos quanto dos
americanos. Lula precisa de
votos e dos americanos progressistas. A imprensa precisa
de leitores e não ousa abalar
seus preconceitos.
Tudo isso é uma garantia de
que o cenário não vai mudar.
Numa guerra, ou se está de um
lado ou se está de outro. Não
há espaço para dúvidas ou hesitações. Todos são convocados
para o combate.
Fora do Brasil, cresce a consciência de que a política de
drogas imposta pelos Estados
Unidos é um fracasso retumbante. Já se reconhece pelo menos a dignidade das posições
contraditórias.
Aqui dentro, as principais televisões anunciaram que importei maconha e jamais se retrataram. Radialistas e apresentadores de programas populares estão sempre pedindo
minha prisão. Guerra é guerra,
dirão os realistas, escudados
nas pesquisas de opinião.
No entanto Estados Unidos e
a maioria dos eleitores estão
trilhando um caminho equivocado. A humanidade poderia
sofrer menos com o problema
das drogas se o problema realmente fosse esse. O problema é
essa conjunção perversa: os
norte-americanos sempre necessitam de um inimigo externo. Os pais sempre necessitam
de um bode expiatório para
sua ausência e desamor.
Líderes como Clinton e Fernando Henrique estarão sempre aí para oferecer a saída repressiva. Clinton, embora tenha lido alguns livros, deve estar satisfeito com sua proposta. Fernando Henrique descobriu sua vocação de delegado
com o mesmo apetite com que
comeu buchada de bode nas
últimas eleições. É capaz de jurar que, tanto a buchada
quanto a política repressiva,
são dois pratos finos, supervalorizados nos restaurantes de
Paris.
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