São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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ENTREVISTA PAULO JOSÉ

Paulo José faz da velhice uma ficção

Aos 70, ator está em "Saneamento Básico", que estréia na sexta; ele diz não dar bola para o mal de Parkinson e se imagina com 25

Aos oito anos, Paulo José brincava de ser cavaleiro do rei Arthur. Com o irmão Luiz Alberto, que defendia o reino de Carlos Magno, teve incríveis duelos. A intimidade com as artes cênicas (e a luta) continua no centro da vida e da imaginação desse ator que, aos 70, é um dos maiores do país. Tratando o mal de Parkinson com medicação, exercícios e certo desdém com a companhia da doença, ele volta às telas na próxima sexta.

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

"Você tem uma doença degenerativa, progressiva e irreversível." Com essas palavras, o médico anunciou ao ator e diretor Paulo José que ele era portador do mal de Parkinson, síndrome que pode levar à perda de movimentos e da voz.
Com olhos e ouvidos atentos ao seu interlocutor, o ator julgou ver nele um traço de "prazer sádico" ao proclamar o diagnóstico. Paulo José então encarou o médico e notou sua careca. "Você também!", pensou o paciente, "afinal, o que é o envelhecimento, senão uma doença degenerativa, progressiva e irreversível?".
Mas velhice é algo com que Paulo José, 70, convive somente na ficção. "Não imagino que tenho 70 anos. Imagino que tenho 25. Mas gosto de representar quem não sou eu, como os velhos de 70."
É exatamente isso o que ele faz em "Saneamento Básico - O Filme", título de Jorge Furtado que chega aos cinemas na próxima sexta-feira.
Otaviano, seu personagem, é um velho marceneiro, desiludido com as possibilidades de avanço social da pequena comunidade gaúcha onde vive e da qual já foi administrador.
Segundo os arquétipos da "commedia dell'arte", que inspirou todos os personagens do roteiro de Furtado, ele seria o "nobre decadente, que quer morrer em paz", aponta o diretor e roteirista.

Fossa
Pai de Marina (Fernanda Torres) e Silene (Camila Pitanga), ele desdenha da tenacidade da filha mais velha para construir no município a fossa sanitária cuja falta é motivo de desconfortos e micoses generalizadas na população local -incluindo o marido de Marina, Joaquim (Wagner Moura).
Por caminhos tortuosos, a trupe familiar acabará produzindo um vídeo, "O Monstro do Fosso", no qual Otaviano interpreta um cientista e -surpresa!- revela-se um ator melhor do que a encomenda.
Esse é o quarto longa-metragem na carreira de Furtado e o 33º na de Paulo José, que começou a brincar de não ser ele mesmo quando ainda era criança, no Rio Grande do Sul, onde foi criado "num clima de fantasia exacerbada".
Com o irmão Luiz Alberto, ele brincava de Távola Redonda. "Luiz Alberto era francês, cavaleiro de Carlos Magno. Eu era do rei Arthur. Tivemos grandes duelos", conta.
A mãe, pianista e declamadora, incentivava a prole na leitura da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, que mantinha em casa, e nas aulas de piano no Instituto Municipal de Belas Artes de Bagé.
"Só mulheres estudavam piano naquela época. Eu, meus irmãos e o filho do dono da papelaria éramos os únicos homens", relembra o ator.

Fazenda
O ambiente caseiro voltado "às expressões artísticas" era contrastado na vida dos garotos com o período de férias na fazenda, onde viviam com os peões e tal qual eles.
A regra era clara: "Se caísse do cavalo e se machucasse, nada de choro. Levanta, monta de novo e pé na estrada".
Aos dez anos, no colégio em Bagé, Paulo José descobriu sua "vocação para diretor", por mérito involuntário do padre Mário Ramos, encarregado das aulas de música e teatro.
Integrante do elenco da montagem infantil que o padre Ramos preparava, Paulo José um dia deixou os ensaios e foi embora para casa "muito inquieto" com uma solução cênica que soava "absolutamente falsa", na contramão do que o garoto achava que devia ser o teatro: "a imitação do real".
No dia seguinte, o aluno sugeriu ao professor uma mudança na cena. Aceita. Quinze anos depois, Paulo José se mudava para São Paulo, para fazer parte do Teatro de Arena, onde se revezou nas funções de "cenógrafo, figurinista, bilheteiro".
Era a época em que ele se sentia "um homem de teatro" e "achava os atores muito egoístas, porque só pensavam em seus próprios personagens".

"Apenas ator"
Foi nas filmagens de "O Padre e a Moça" (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, que ele "descobriu a delícia de ser apenas ator". Quando chegou à cidade de Diamantina, substituindo às pressas o ator que faria o papel principal, mas contraiu hepatite às vésperas da filmagem, Paulo José encontrou tudo pronto e no lugar.
"Bem que eu tentei. Mas não havia nada para eu dar palpite. Eu só tinha que me preocupar em dar verossimilhança ao meu personagem."
Na atuação minimalista que o cinema exige, Paulo José descobriu, além da delícia, também o segredo de ser ator.
"Tudo acontece no olho, quando você [o público] olha e vê que tem alguém morando ali dentro. Em alguns atores, você vê que não tem ninguém dentro. Saiu e foi para onde?"
Da pré-estréia de "O Padre e a Moça" no Rio de Janeiro, Paulo José guarda uma de suas memórias mais fortes do cinema. Ele, o diretor e o montador Eduardo Escorel foram para a sessão "muito apreensivos". Esperavam ser recebidos com "pó-de-mico e gás sulfídrico pelo pessoal da UNE", que supunha tratar-se de "um filme alienado" e queria "sabotar a exibição".
"Num momento em que a arte estava comprometida com a política, tendo que dar uma resposta ao golpe militar, vinha o Joaquim Pedro falar da história de um padre com uma moça, no interior de Minas, porra!"
A sessão que se anunciava "insuportável" começou com "certo alvoroço, mas foi silenciando aos poucos" e terminou com "o aplauso de quem antes estava contra, sem ter visto, mas acabou percebendo que aquele era um filme extremamente político, sobre preconceito, repressão e a exploração violenta da miséria".
Embora a arte estivesse comprometida com a luta contra a ditadura, o regime militar persistiu e, em 1968, Paulo José partiu com seu grupo de teatro, o Tusp, em turnê pela França, com a decisão já tomada de dissolvê-lo na Europa.

Dina Sfat
Antes da viagem, casou-se com a atriz Dina Sfat (1938-1989), que já era sua "companheira", como ele diz. Como presente de casamento, as famílias de ambos deram a eles o suficiente para que passassem um ano vivendo em Paris.
Quando o casal retornou ao Brasil, o segundo filme de Paulo José com Joaquim Pedro de Andrade, "Macunaíma" (1969), fazia "enorme sucesso", o que contribuiu para delinear o percurso do ator em direção à TV Globo.
"Fui para a televisão porque o cinema autoral tinha acabado, os teatros estavam fechados. Não havia campo de trabalho. A TV nos cooptou."
Aos 32 anos, Paulo José continuava gostando de dar palpites na direção alheia. Agora, não era o padre Ramos, e sim Daniel Filho quem ouvia suas sugestões para a novela "Véu de Noiva". No dia em que ficou farto de tanto comentário, Daniel Filho lançou o desafio: "Hoje você dirige!". O ator ficou "meio apavorado", mas aceitou. "Marquei todas as cenas e dirigi. Até que deu para fazer direitinho." Tão direitinho que ele se tornou diretor na emissora.
Enquanto revira suas memórias na conversa com a Folha, Paulo José fila cinco cigarros e, a cada vez, repete a explicação por não ter no bolso o próprio maço: "Parei de fumar!".
Pergunto se suas baforadas devem ser consideradas como suspiros. "Desconfio dos que não fumam: esses não têm vida interior, não têm sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar", ele diz.
E arremata o poema de Mário Quintana com a confissão de que vive "sem dar bola" para o Parkinson e cuida a sério da saúde, mas não aceita todas as privações. "A vida é uma qualidade, não uma quantidade. É preciso negociar isso direito."


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