São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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FERREIRA GULLAR

Evocação de Lucy Teixeira


Quando veio me atender à porta, achei você pequenina e parecida com uma boneca

EU SEI que você voltou para São Luís e agora está dormindo profundamente. Depois de muitos e muitos anos, que duraram quase o tempo de uma vida, você decidiu voltar definitivamente para nossa cidade, por certo saudosa dessas ruas ladeadas de sobrados de azulejos e também para ouvir o rumor do vento nos oitizeiros e nas palmeiras. Já eu não voltei, que meu coração não é tão manso ou talvez porque sinta medo do passado.
No entanto, desde que soube de sua volta e que está agora dormindo aí, em algum ponto da cidade, acendeu-se em mim a lembrança do dia em que a vi pela primeira vez, na casa de sua família, quase na esquina da avenida Beira-Mar. Quando veio me atender à porta, achei você pequenina e parecida com uma boneca, por causa de seu rosto redondo e dos olhos espantados. Não sabia que íamos ser amigos para o resto da vida.
Eu tinha 20 anos, e você, uns oito mais, tanto que já morava no Rio de Janeiro, onde todo poeta de província, naquela época, sonhava viver. Menos eu, que era sonho demais para mim. Você achava que não, tanto que me deu para ler uma tese escrita por Mário Pedrosa sobre a natureza afetiva da forma na obra de arte, certa de que seria capaz de entender aquilo. E não é que entendi e até discordei de algumas coisas? Você disse então que eu tinha de ir para a capital do país, pois meu destino era aquele.
E eu me empolguei e vim. Fui morar numa pensão de estudantes ali na rua Benjamin Constant, na Glória, logo visitei seu apartamento em Copacabana e, depois, o do próprio Mário. Fomos juntos e lá conheci a Mary e sua filha Vera, além de um monte de pintores e escultores, que se tornaram meus amigos e encheram minha vida. Já quase todos se foram, ou quase todos? Sobramos nós dois, talvez. Não, há ainda o Almir Mavignier, que vive na Europa, e o Abrahão Palatnik, que faz tempo não vejo. De fato, sobramos você e eu, mas você voltou para São Luís e, agora, está dormindo.
Tornamo-nos amigos inseparáveis, estávamos quase todos os dias juntos, fosse no Vermelinho ou jantando na Associação Cristã de Moços, que ainda era ali na Araújo Porto-Alegre, em frente ao belo edifício do antigo MEC. Falávamos de tudo, especialmente de arte e poesia, mas também da vida alheia e da nossa. Você estava apaixonada por um homem mais velho, casado, que não queria nada com você, e eu por uma garota, mais nova, que também nada queria comigo.
Você, generosa, gostava de meus poemas, tanto que, quando os publiquei, escreveu um belo artigo sobre eles. Mas um dia me falou que ia embora do Brasil e eu li em seus olhos que a razão disso era aquele amor infeliz. Você havia se declarado a ele, que, fiel à esposa, respondeu: "Para o futuro serei sempre um homem disponível". Arrasada, foi amargar sua dor, longe de todos, em Bruxelas.
Senti muito a sua falta mas, àquela altura, já me havia casado, contrariando meus propósitos e seus conselhos. É que às vezes me deixo levar pelo arroubo, sem pensar nas conseqüências.
De longe, você dava sinal de vida. Um dia, pediu-me que lhe mandasse uma coisa preciosa para mim: o diário de "A Luta Corporal", o livro que havia escrito durante aqueles meus primeiros anos no Rio. Sem hesitar, mandei-lhe o caderno manuscrito, que se perdeu para sempre. Pouco me importa, você é minha irmã.
Bem, não dá para contar tudo. Já então você havia trocado a Bélgica pela Itália -mais precisamente, por Gênova. Passaram-se anos e nunca mais nos vimos nem nos falamos. De vez em quando sabia de você e você de mim, por meio de amigos. Nossos caminhos se tornaram demasiado distantes, já que você sempre foi mais do sonho que da política, mais da tessitura sutil da vida que das batalhas e manifestos. Mas, de vez em quando, me lembrava de nós, com ternura.
E não é que, de repente, você voltou? Foi uma grande alegria reencontrá-la naquele almoço na Trattoria. Rimos de nossas ilusões e perdas, rimos até daquela paixão que fez você fugir do país. Então fitei seu rosto de boneca engraçada e me comovi, ao ver ali, diante de mim, a mesma menina encantada com o mistério da vida, sutil e imaginosa como é a sua literatura, que, com os anos, ganhou novos modos de dizer a beleza -essa beleza que você sempre soube inventar.
Certa manhã, surpreendi-me com seu telefonema: "Voltei, caro amigo, voltei para a nossa São Luís".
Voltou e adormeceu à sombra dos velhos sobrados de azulejo para não acordar nunca mais. Pena que só evoque essas coisas agora, quando você, dormindo, já não me poderá ler.

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