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FERREIRA GULLAR
Evocação de Lucy Teixeira
Quando veio me atender à porta, achei você pequenina e parecida com uma boneca
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EU SEI que você voltou para São
Luís e agora está dormindo
profundamente. Depois de
muitos e muitos anos, que duraram
quase o tempo de uma vida, você decidiu voltar definitivamente para
nossa cidade, por certo saudosa dessas ruas ladeadas de sobrados de
azulejos e também para ouvir o rumor do vento nos oitizeiros e nas
palmeiras. Já eu não voltei, que meu
coração não é tão manso ou talvez
porque sinta medo do passado.
No entanto, desde que soube de
sua volta e que está agora dormindo
aí, em algum ponto da cidade, acendeu-se em mim a lembrança do dia
em que a vi pela primeira vez, na casa de sua família, quase na esquina
da avenida Beira-Mar. Quando veio
me atender à porta, achei você pequenina e parecida com uma boneca, por causa de seu rosto redondo e
dos olhos espantados. Não sabia
que íamos ser amigos para o resto
da vida.
Eu tinha 20 anos, e você, uns oito
mais, tanto que já morava no Rio de
Janeiro, onde todo poeta de província, naquela época, sonhava viver.
Menos eu, que era sonho demais para mim. Você achava que não, tanto
que me deu para ler uma tese escrita
por Mário Pedrosa sobre a natureza
afetiva da forma na obra de arte, certa de que seria capaz de entender
aquilo. E não é que entendi e até discordei de algumas coisas? Você disse
então que eu tinha de ir para a
capital do país, pois meu destino
era aquele.
E eu me empolguei e vim. Fui morar numa pensão de estudantes ali
na rua Benjamin Constant, na Glória, logo visitei seu apartamento em
Copacabana e, depois, o do próprio
Mário. Fomos juntos e lá conheci a
Mary e sua filha Vera, além de um
monte de pintores e escultores, que
se tornaram meus amigos e encheram minha vida. Já quase todos se
foram, ou quase todos? Sobramos
nós dois, talvez. Não, há ainda o Almir Mavignier, que vive na Europa, e
o Abrahão Palatnik, que faz tempo
não vejo. De fato, sobramos você e
eu, mas você voltou para São Luís e,
agora, está dormindo.
Tornamo-nos amigos inseparáveis, estávamos quase todos os dias
juntos, fosse no Vermelinho ou jantando na Associação Cristã de Moços, que ainda era ali na Araújo Porto-Alegre, em frente ao belo edifício
do antigo MEC. Falávamos de tudo,
especialmente de arte e poesia, mas
também da vida alheia e da nossa.
Você estava apaixonada por um homem mais velho, casado, que não
queria nada com você, e eu por uma
garota, mais nova, que também nada
queria comigo.
Você, generosa, gostava de meus
poemas, tanto que, quando os publiquei, escreveu um belo artigo sobre
eles. Mas um dia me falou que ia embora do Brasil e eu li em seus olhos
que a razão disso era aquele amor infeliz. Você havia se declarado a ele,
que, fiel à esposa, respondeu: "Para o
futuro serei sempre um homem disponível". Arrasada, foi amargar sua
dor, longe de todos, em Bruxelas.
Senti muito a sua falta mas, àquela
altura, já me havia casado, contrariando meus propósitos e seus
conselhos. É que às vezes me deixo
levar pelo arroubo, sem pensar nas
conseqüências.
De longe, você dava sinal de vida.
Um dia, pediu-me que lhe mandasse
uma coisa preciosa para mim: o diário de "A Luta Corporal", o livro que
havia escrito durante aqueles meus
primeiros anos no Rio. Sem hesitar,
mandei-lhe o caderno manuscrito,
que se perdeu para sempre. Pouco
me importa, você é minha irmã.
Bem, não dá para contar tudo. Já
então você havia trocado a Bélgica
pela Itália -mais precisamente, por
Gênova. Passaram-se anos e nunca
mais nos vimos nem nos falamos. De
vez em quando sabia de você e você
de mim, por meio de amigos. Nossos
caminhos se tornaram demasiado
distantes, já que você sempre foi
mais do sonho que da política, mais
da tessitura sutil da vida que das batalhas e manifestos. Mas, de vez em
quando, me lembrava de nós, com
ternura.
E não é que, de repente, você voltou? Foi uma grande alegria reencontrá-la naquele almoço na Trattoria. Rimos de nossas ilusões e perdas, rimos até daquela paixão que
fez você fugir do país. Então fitei seu
rosto de boneca engraçada e me comovi, ao ver ali, diante de mim, a
mesma menina encantada com o
mistério da vida, sutil e imaginosa
como é a sua literatura, que, com os
anos, ganhou novos modos de dizer
a beleza -essa beleza que você sempre soube inventar.
Certa manhã, surpreendi-me com
seu telefonema: "Voltei, caro amigo,
voltei para a nossa São Luís".
Voltou e adormeceu à sombra
dos velhos sobrados de azulejo para
não acordar nunca mais. Pena
que só evoque essas coisas agora,
quando você, dormindo, já não me
poderá ler.
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