São Paulo, Quinta-feira, 15 de Julho de 1999
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ARTE NA RUA
A gente não quer só comida


Entre um prato e outro de sopa, moradores de rua assistem a curtas no centro de SP, em sessão promovida pelo projeto AlimentArte e Cine Mambembe


ERIKA SALLUM
da Reportagem Local

Assim que as primeiras imagens surgiram na tela instalada em pleno largo de Santa Cecília, no centro de São Paulo, Fernando, 6, arregalou os olhos como quem não acredita no que vê. "Quem alugou essa fita? Qual o nome do filme? Vai ter pato Donald depois?" Hipnotizado, só desviou o rosto da tela quando desligaram o projetor.
Fernando é morador de rua e, na semana passada, aguardava, junto com a mãe, num frio cortante de uma noite de inverno, à distribuição da sopa do projeto AlimentArte, como acontece todas as quartas-feiras há dois anos. O projeto, criado por um grupo de amigos liderado pelo psiquiatra Wilson Gonzaga, prevê a doação de alimentos acompanhada de arte, seja ela qual for.
Sem patrocínio, o AlimentArte não pode levar artistas ao largo de Santa Cecília regularmente e vive da boa vontade de músicos, palhaços, cantores e atores que se dispõem a participar.
Na semana passada, além da sopa, os cerca de 50 moradores de rua que estavam no local tiveram uma noite especial: assistiram a uma sessão do Cine Mambembe, projeto criado há três anos por Luiz Bolognesi, 33, e Laís Bodanzky, 29, que exibe curtas-metragens para um público que não tem acesso à cultura.
A uma platéia formada por mendigos do centro da cidade, o Cine Mambembe mostrou os curtas "Novela", de Otto Guerra, "Coentro e Quiabo na Carne de Sol", de Edu Abad, e "Pedro e o Senhor", de Bolognesi.
No início desconfiados diante da tela apagada montada ao ar livre, os moradores de rua esqueceram por um tempo o frio, a fome e até a sopa, distribuída em garrafas de Coca-Cola vazias, e se deleitaram com cenas como a de "Pedro", que mostra um carroceiro nas ruas do centro.
"Escolhemos os filmes de acordo com o público. Em escolas, projetamos curtas mais fortes, que dão margem a uma discussão após a sessão. Mas aqui é diferente, temos de trazer mais entretenimento. Não dá para jogar social na cara dessas pessoas, elas já vivem isso em tempo integral", afirma Bolognesi.
Os curtas não apenas agradaram quem estava presente -o sucesso foi geral. Poucos desgrudaram os olhos da tela enquanto tomavam a sopa. "Olha, rapaz, você ali no seu carrinho...", ria um pedinte que não quis dizer o nome, enquanto apontava o carroceiro de "Pedro e o Senhor". Uma das cenas mais aplaudidas foi a que exibe o protagonista tomando banho numa fonte.
"Lidamos aqui com pessoas de difícil contato e não há dúvida de que a arte ajuda nisso. É um meio sofrido, em que não é raro haver brigas, mas, quando trazemos uma música, por exemplo, muda tudo", diz Gonzaga, que está atualmente fazendo curso de palhaço, já que cada vez mais é difícil contar com a presença de artistas.
"Já percorremos 15 mil quilômetros pelo Brasil afora, mas é muito difícil ver no interior a quantidade de gente miserável que se vê na cidade", conta Laís, enquanto projeta seus filmes.
Durante 40 minutos, o garoto Fernando mal piscou. Terminada a sessão, com um ar perdido, apenas perguntava: "E vai ter mais?".

Projeto AlimentArte: tels. 0/xx/11/ 282-1038 (falar c/ Carlos Minuano)
Cine Mambembe: tel. 0/xx/11/263-6446 (falar c/ Laís ou Luiz)

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