|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HISTÓRIA
"Dicionário do Brasil Imperial", dirigido por Ronaldo Vainfas, chega hoje às livrarias
Império encontra excluídos de sua história tradicional
Reprodução
|
|
COROAÇÃO
Tela de Debret ilustra o momento em que dom Pedro 1º recebe a coroa, em 1822; segundo o dicionário, o primeiro imperador do Brasil "lia, falava e escrevia o francês" e "não foi o semi-analfabeto que alguns pretenderam divulgar"
Em 406 verbetes, obra reúne biografias, conceitos e fatos marcantes da vida política do período imperial
|
O rei está nu
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
No mais novo filme do cineasta
Ugo Giorgetti ("O Príncipe", em
cartaz em SP) há um professor de
história que enlouquece. Inconformado com o fato de o Brasil
nunca ter participado de forma
ativa dos principais eventos da
história mundial, decide reinventá-los, colocando os brasileiros
como protagonistas de importantes episódios do século 20. Joga,
ainda, no lixo os livros de história
tradicionais e resolve usar a poesia e a literatura para suas aulas,
agarrado a um volume de Jorge
Luis Borges.
Sim, imaginar o Brasil como
protagonista da história do Ocidente é uma loucura. Mas, no desvario do personagem Mário há
questionamentos bastante pertinentes à história: como rever de
forma crítica a maneira como foi
narrado o passado, como incluir
os marginalizados pelos relatos
oficiais e como trabalhar no nebuloso limiar entre história e ficção?
Chega hoje às livrarias brasileiras um valioso volume que vem
colaborar com a historiografia do
Império brasileiro, jogando uma
nova luz a um período já bastante
documentado, mas repleto de
personagens transformados às
vezes em heróis, às vezes em bufões, dependendo do olhar de
quem os interpretou.
O "Dicionário do Brasil Imperial" vem na sequência do volume
sobre a Colônia e tem a organização do historiador Ronaldo Vainfas. À frente de uma equipe de estudiosos do século 19, o pesquisador constituiu em verbetes um
panorama riquíssimo em informações e detalhes curiosos, ao
mesmo tempo crítico da historiografia que tratou do período.
Os 406 verbetes cobrem desde a
chegada da família real portuguesa ao Rio, em 1808, até a proclamação da República, em 1889.
O dicionário elenca, ao lado de
figuras políticas consagradas, personagens menos conhecidos e
praticamente excluídos das narrativas tradicionais: populares, revoltosos, mulheres, escravos e artistas de menor relevo.
A história de Mahommah Gardo Baquaqua é um exemplo. Originário do Benin, Baquaqua foi
um dos poucos escravos a deixar
uma autobiografia, descrevendo
sua trajetória no cativeiro brasileiro e, depois, suas viagens para os
EUA, Haiti e Canadá.
Por sua natureza marginal,
muitos temas foram de difícil trato. É o caso do verbete "zungu",
referente às casas onde se encontravam escravos e brancos pobres
para ouvir música, planejar fugas
ou abrigar-se. As chamadas "casas de zungu" só aparecem nos registros das prisões onde seus integrantes iam parar ou em notícias
de jornais que reportavam os atos
ilegais ali planejados.
Folha - Pelo fato de a sociedade
imperial ter sido mais variada que
a colonial, foi mais difícil escolher
os personagens biografados?
Ronaldo Vainfas - Sim, a sociedade se tornou muito mais complexa com a formação do Estado, os
inícios da modernização e transformações no campo cultural. A
seleção dos personagens foi muito difícil, sobretudo no tocante às
celebridades. Especialmente no
campo da política, mas também
no da imprensa, literatura, música, artes, dos viajantes e cientistas.
O número de personagens cresceu enormemente desde 1808,
quando se transferiu a máquina
burocrática para o Rio. Também
cresceu o número de personagens
populares, considerando a explosão de revoltas, desde rebeliões
separatistas até insurreições escravas, o que confirma que nem a
formação do Estado imperial
nem o processo do abolicionismo
foram incruentos e pacíficos.
Folha - Há uma preocupação
grande com a literatura. Qual o retrato do Império que ela deixou?
Vainfas - De várias maneiras o
surgimento e consolidação de
uma literatura nacional -e das
artes em geral- não só ajudam a
compreender o século 19 como
foram fatores decisivos na história do Império. O romantismo indianista de José de Alencar, também presente na ópera de Carlos
Gomes e na pintura de Rodolfo
Amoedo, foi elemento decisivo na
construção de um imaginário que
fez do índio um símbolo da nacionalidade. Já no último quartel do
século 19, o realismo de Machado
de Assis punha em xeque, por
meio de sutilezas corrosivas, o
próprio Brasil como nação.
Mas vale citar o surgimento de
literaturas regionais, dando conta
das enormes diferenças que a unidade imperial não podia ocultar,
sem falar nas manifestações da
cultura popular, exprimindo padrões culturais distantes do ideal
europeizante das elites.
Folha - O dicionário busca fornecer informações sobre o período e,
ao mesmo tempo, fazer uma crítica
historiográfica. Como foram discutidos e selecionados os verbetes
tendo em vista a necessidade de
cumprir ambas as funções?
Vainfas - A fixação da lista de
verbetes resultou de diversos e
longuíssimos seminários. A seleção levou em conta, de um lado, a
necessidade de registrar fatos,
processos decisivos e personagens célebres, e, de outro, lançar
alguma luz sobre indivíduos e
enredos menos conhecidos, mas
crescentemente resgatados pela
historiografia recente.
No que toca à informação, se
buscou contextualizar os temas.
Quanto à análise, os verbetes procuram enunciar as controvérsias
ou problematizar as informações.
Folha - Que tipo de personagem é
mais difícil biografar?
Vainfas - As dificuldades para
verbetar personagens oficiais ou
populares se equivalem. No caso
de rebeldes ou personagens da vida cotidiana, a dificuldade reside
na escassez de fontes ou na existência solitária de fontes do poder
que distorcem ou criminalizam
os indivíduos. No caso dos personagens oficiais, o problema reside, ao contrário, na abundância
de fontes primárias e bibliográficas e numa tendência mitificadora, para o bem ou para o mal, conforme a tendência historiográfica.
Folha - A crítica às vezes aparece
em tom quase irônico, como no verbete "Joana Angélica". Para contestar a historiografia laudatória
do período pós-independência em
relação a seus mártires, o senhor se
utilizou dos fatos e do estilo dessa
narrativa, mas num tom sarcástico.
Concorda com essa interpretação?
Vainfas - Todos os verbetes tiveram a preocupação de enfrentar
os mitos consagrados, sejam laudatórios ou detratores. No caso de
Joana Angélica, mostrou-se, com
sutileza, que ela morreu por tentar impedir a entrada de soldados
no convento da Lapa, na Bahia,
do qual era abadessa, não por esposar a causa da independência.
Já Anita Garibaldi era somente a
mulher do italiano Giuseppe Garibaldi, ele mesmo um revolucionário meio dúbio, aqui foi mais
mercenário que militante de qualquer causa. Ambos viraram monumento. A sutileza ou ironia
desses verbetes é questão de estilo
e uma forma de discutir mitologias políticas, iluminando as entrelinhas da história imperial.
Buscamos contextualizar melhor
o papel atribuído a certos personagens do panteão histórico, como dom João 6º ou mesmo dom
Pedro 1º, estadistas importantes
costumeiramente ridicularizados,
sobretudo D. João, em livros, filmes, séries televisivas...
DICIONÁRIO BRASIL IMPERIAL
- Coordenação: Ronaldo Vainfas.
Pesquisa: Lúcia Bastos Pereira das Neves,
Lúcia Paschoal Guimarães, Martha
Abreu, Hebe Maria Mattos, Sheila
Siqueira de Castro Faria e Magali Engel.
Editora: Objetiva. Quanto: R$ 68,90 (752
págs.).
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Frase Índice
|