São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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HISTÓRIA

"Dicionário do Brasil Imperial", dirigido por Ronaldo Vainfas, chega hoje às livrarias

Império encontra excluídos de sua história tradicional

Reprodução
COROAÇÃO
Tela de Debret ilustra o momento em que dom Pedro 1º recebe a coroa, em 1822; segundo o dicionário, o primeiro imperador do Brasil "lia, falava e escrevia o francês" e "não foi o semi-analfabeto que alguns pretenderam divulgar"


Em 406 verbetes, obra reúne biografias, conceitos e fatos marcantes da vida política do período imperial

O rei está nu

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

No mais novo filme do cineasta Ugo Giorgetti ("O Príncipe", em cartaz em SP) há um professor de história que enlouquece. Inconformado com o fato de o Brasil nunca ter participado de forma ativa dos principais eventos da história mundial, decide reinventá-los, colocando os brasileiros como protagonistas de importantes episódios do século 20. Joga, ainda, no lixo os livros de história tradicionais e resolve usar a poesia e a literatura para suas aulas, agarrado a um volume de Jorge Luis Borges.
Sim, imaginar o Brasil como protagonista da história do Ocidente é uma loucura. Mas, no desvario do personagem Mário há questionamentos bastante pertinentes à história: como rever de forma crítica a maneira como foi narrado o passado, como incluir os marginalizados pelos relatos oficiais e como trabalhar no nebuloso limiar entre história e ficção?
Chega hoje às livrarias brasileiras um valioso volume que vem colaborar com a historiografia do Império brasileiro, jogando uma nova luz a um período já bastante documentado, mas repleto de personagens transformados às vezes em heróis, às vezes em bufões, dependendo do olhar de quem os interpretou.
O "Dicionário do Brasil Imperial" vem na sequência do volume sobre a Colônia e tem a organização do historiador Ronaldo Vainfas. À frente de uma equipe de estudiosos do século 19, o pesquisador constituiu em verbetes um panorama riquíssimo em informações e detalhes curiosos, ao mesmo tempo crítico da historiografia que tratou do período.
Os 406 verbetes cobrem desde a chegada da família real portuguesa ao Rio, em 1808, até a proclamação da República, em 1889.
O dicionário elenca, ao lado de figuras políticas consagradas, personagens menos conhecidos e praticamente excluídos das narrativas tradicionais: populares, revoltosos, mulheres, escravos e artistas de menor relevo.
A história de Mahommah Gardo Baquaqua é um exemplo. Originário do Benin, Baquaqua foi um dos poucos escravos a deixar uma autobiografia, descrevendo sua trajetória no cativeiro brasileiro e, depois, suas viagens para os EUA, Haiti e Canadá.
Por sua natureza marginal, muitos temas foram de difícil trato. É o caso do verbete "zungu", referente às casas onde se encontravam escravos e brancos pobres para ouvir música, planejar fugas ou abrigar-se. As chamadas "casas de zungu" só aparecem nos registros das prisões onde seus integrantes iam parar ou em notícias de jornais que reportavam os atos ilegais ali planejados.

Folha - Pelo fato de a sociedade imperial ter sido mais variada que a colonial, foi mais difícil escolher os personagens biografados?
Ronaldo Vainfas -
Sim, a sociedade se tornou muito mais complexa com a formação do Estado, os inícios da modernização e transformações no campo cultural. A seleção dos personagens foi muito difícil, sobretudo no tocante às celebridades. Especialmente no campo da política, mas também no da imprensa, literatura, música, artes, dos viajantes e cientistas.
O número de personagens cresceu enormemente desde 1808, quando se transferiu a máquina burocrática para o Rio. Também cresceu o número de personagens populares, considerando a explosão de revoltas, desde rebeliões separatistas até insurreições escravas, o que confirma que nem a formação do Estado imperial nem o processo do abolicionismo foram incruentos e pacíficos.

Folha - Há uma preocupação grande com a literatura. Qual o retrato do Império que ela deixou?
Vainfas -
De várias maneiras o surgimento e consolidação de uma literatura nacional -e das artes em geral- não só ajudam a compreender o século 19 como foram fatores decisivos na história do Império. O romantismo indianista de José de Alencar, também presente na ópera de Carlos Gomes e na pintura de Rodolfo Amoedo, foi elemento decisivo na construção de um imaginário que fez do índio um símbolo da nacionalidade. Já no último quartel do século 19, o realismo de Machado de Assis punha em xeque, por meio de sutilezas corrosivas, o próprio Brasil como nação.
Mas vale citar o surgimento de literaturas regionais, dando conta das enormes diferenças que a unidade imperial não podia ocultar, sem falar nas manifestações da cultura popular, exprimindo padrões culturais distantes do ideal europeizante das elites.

Folha - O dicionário busca fornecer informações sobre o período e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica historiográfica. Como foram discutidos e selecionados os verbetes tendo em vista a necessidade de cumprir ambas as funções?
Vainfas -
A fixação da lista de verbetes resultou de diversos e longuíssimos seminários. A seleção levou em conta, de um lado, a necessidade de registrar fatos, processos decisivos e personagens célebres, e, de outro, lançar alguma luz sobre indivíduos e enredos menos conhecidos, mas crescentemente resgatados pela historiografia recente.
No que toca à informação, se buscou contextualizar os temas. Quanto à análise, os verbetes procuram enunciar as controvérsias ou problematizar as informações.

Folha - Que tipo de personagem é mais difícil biografar?
Vainfas -
As dificuldades para verbetar personagens oficiais ou populares se equivalem. No caso de rebeldes ou personagens da vida cotidiana, a dificuldade reside na escassez de fontes ou na existência solitária de fontes do poder que distorcem ou criminalizam os indivíduos. No caso dos personagens oficiais, o problema reside, ao contrário, na abundância de fontes primárias e bibliográficas e numa tendência mitificadora, para o bem ou para o mal, conforme a tendência historiográfica.

Folha - A crítica às vezes aparece em tom quase irônico, como no verbete "Joana Angélica". Para contestar a historiografia laudatória do período pós-independência em relação a seus mártires, o senhor se utilizou dos fatos e do estilo dessa narrativa, mas num tom sarcástico. Concorda com essa interpretação?
Vainfas -
Todos os verbetes tiveram a preocupação de enfrentar os mitos consagrados, sejam laudatórios ou detratores. No caso de Joana Angélica, mostrou-se, com sutileza, que ela morreu por tentar impedir a entrada de soldados no convento da Lapa, na Bahia, do qual era abadessa, não por esposar a causa da independência.
Já Anita Garibaldi era somente a mulher do italiano Giuseppe Garibaldi, ele mesmo um revolucionário meio dúbio, aqui foi mais mercenário que militante de qualquer causa. Ambos viraram monumento. A sutileza ou ironia desses verbetes é questão de estilo e uma forma de discutir mitologias políticas, iluminando as entrelinhas da história imperial. Buscamos contextualizar melhor o papel atribuído a certos personagens do panteão histórico, como dom João 6º ou mesmo dom Pedro 1º, estadistas importantes costumeiramente ridicularizados, sobretudo D. João, em livros, filmes, séries televisivas...


DICIONÁRIO BRASIL IMPERIAL
- Coordenação: Ronaldo Vainfas. Pesquisa: Lúcia Bastos Pereira das Neves, Lúcia Paschoal Guimarães, Martha Abreu, Hebe Maria Mattos, Sheila Siqueira de Castro Faria e Magali Engel. Editora: Objetiva. Quanto: R$ 68,90 (752 págs.).




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