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São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Parente também pode ser serpente

Pedro Corrêa do Lago, como todos sabemos, é um bibliófilo, um catador de documentos, um entendido em manuscritos, esteve há pouco em Portugal, para a entrega do prêmio Camões ao Zé Rubem Fonseca, aproveitou e fuçou todos os alfarrábios que encontrou. Descobriu e me trouxe um documento da intendência militar portuguesa, dos inícios do século 19, em que um tal major Gonçalo Cony, em processo de reforma ou dispensa da tropa, era intimado a pagar não sei quantos réis ao erário do Exército, pela compra de um cavalo.
Tremi nas bases. Pedro queria saber se eu tinha conhecimento deste remoto parente. Lógico que não tinha, mas não nasci de geração espontânea; de Adão em diante muita gente deve ser responsabilizada civil e penalmente pela minha presença no mundo.
Como se não bastassem as dúvidas e dívidas que sempre carreguei comigo, passei a carregar mais uma, a de pagar um cavalo ao Exército português, ao exército de Afonso Henriques, de dom Sebastião e de outros varões assinalados, a fim de lavar a honra e o prontuário de um provável parente.
Não sei quanto custa um cavalo hoje e muito menos quanto custava em moeda portuguesa da época. Mas desde já vou deixar algum de lado para, na próxima ida a Portugal, resgatar esta dívida que, honestamente, eu ignorava.
Como as más notícias não andam sozinhas, eis que o meu amigo Antônio Torres publica seu último romance, "O Nobre Sequestrador" (Record, 2003), após anos em que pesquisou o corsário Duguay-Trouin, cujos feitos e efeitos chegaram até o Brasil, cometendo a façanha que nem o Fernandinho Beira-mar conseguiu, a de conquistar e ocupar o Rio de Janeiro e de cá só sair após levar ouro em barras e em pó (1.624 libras), quatro canastras cheias de prata, 1.484 barricas de açúcar, 1.167 barbatanas de baleia, velas, canhões, centenas de bois e outro tanto de donzelas, enchendo com tudo isso dois de seus maiores navios.
Eu sabia por alto da existência desse francês por nossas bandas, mas ignorava que era meu primo. Realmente, tinha vaga noção de ter remotíssimos parentes em Saint-Malo, terra do corsário, que o Antônio Torres visitou diversas vezes. Numa delas, tirou foto junto à estátua de Duguay-Trouin, monumento principal daquela cidade de onde vieram alguns Conys para Marselha e, mais tarde, para o Brasil.
Pois era meu primo, segundo a indiscutível opinião do Torres, que começou a espalhar por aí o parentesco, no qual, a contragosto, comecei a acreditar. O diabo é se o nosso alcaide, César Maia, em sabendo da ascendência pirata do pobre munícipe que sou eu, resolver cobrar o que o meu primo roubou da cidade, as canastras de prata, as barras de ouro, as barbatanas de baleias, os bois e mulheres que, honestamente, não sei onde arranjar.
De qualquer forma, parente é parente e ninguém é mais parente do que a mãe de todos nós. Mês passado, aqui neste mesmo local, escrevi uma crônica sobre a verdadeira história de um verdadeiro filho da puta. Usei a primeira pessoa, que é tradicional no gênero da crônica, um gênero que os entendidos colocam na escola romântica, onde o "eu", se não é o personagem único, costuma ser o mais frequente.
Até aí, tudo bem. Contei as vicissitudes de um menino feio, perebento, esfomeado, que era levado pela mãe para a casa dos diversos homens que a sustentaram, até que encalhou num apartamento do Catumbi, onde morava um oficial administrativo padrão M, da antiga Prefeitura do Distrito Federal, que era aqui mesmo no Rio, então capital da República. Com isso, não mais precisou do expediente que dava nas ruas do baixo meretrício e iniciou um período de dignidade, que o filho não entendeu direito.
Evidente que é uma ficção, recurso de que a crônica se utiliza aleatoriamente. Eça de Queiroz inventou um Fradique Mendes, Drummond de Andrade tinha um amigo na roça que lhe escrevia cartas e mandava compotas de doces mineiros.
Pois não é que um pastor presbiteriano, que edita um jornal com tiragem de 40 mil exemplares, nele escreveu um artigo citando-me como exemplo, eu, filho de meretriz, dera a volta por cima etc. e tal, chegara à Academia Brasileira de Letras.
Por mais heróico que tenha sido meu passado, e por mais lisonjeiro que seja o artigo do pastor, infelizmente não sirvo para este tipo de exemplo, o de ter dado a volta por cima de um destino cruel. Minha mãe, quando era criança, foi da Cruzada Eucarística; jovem, foi filha de Maria até o casamento; e, casada, foi do Apostolado da Oração, onde se aposentou após anos em que usava aquela fita vermelha e larga das devotas. Nas quartas-feiras de cinzas, todos as imagens de nossa casa amanheciam cobertas de panos roxos, em respeito à Quaresma, na qual ela jejuava, tomando uma canjica ao leite duas vezes por dia, enquanto o pai, que nunca jejuava, aproveitava as sobras da canjica e se fartava.
Primo em Portugal devendo um cavalo ao Reino, primo corsário que saqueou o Rio, levando-nos ouro, prata, bois e mulheres, finalmente, a mãe que o pastor presbiteriano acreditou ser verdadeira. Tudo isso me faz desconfiar dos parentes, que, afinal, rimam com serpentes, de acordo com aquele terrível e gostoso filme do Mario Monicelli.


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