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CARLOS HEITOR CONY
Parente também pode ser serpente
Pedro Corrêa do Lago, como
todos sabemos, é um bibliófilo, um catador de documentos,
um entendido em manuscritos,
esteve há pouco em Portugal, para a entrega do prêmio Camões
ao Zé Rubem Fonseca, aproveitou
e fuçou todos os alfarrábios que
encontrou. Descobriu e me trouxe
um documento da intendência
militar portuguesa, dos inícios do
século 19, em que um tal major
Gonçalo Cony, em processo de reforma ou dispensa da tropa, era
intimado a pagar não sei quantos
réis ao erário do Exército, pela
compra de um cavalo.
Tremi nas bases. Pedro queria
saber se eu tinha conhecimento
deste remoto parente. Lógico que
não tinha, mas não nasci de geração espontânea; de Adão em
diante muita gente deve ser responsabilizada civil e penalmente
pela minha presença no mundo.
Como se não bastassem as dúvidas e dívidas que sempre carreguei comigo, passei a carregar
mais uma, a de pagar um cavalo
ao Exército português, ao exército
de Afonso Henriques, de dom Sebastião e de outros varões assinalados, a fim de lavar a honra e o
prontuário de um provável parente.
Não sei quanto custa um cavalo
hoje e muito menos quanto custava em moeda portuguesa da época. Mas desde já vou deixar algum de lado para, na próxima
ida a Portugal, resgatar esta dívida que, honestamente, eu ignorava.
Como as más notícias não andam sozinhas, eis que o meu amigo Antônio Torres publica seu último romance, "O Nobre Sequestrador" (Record, 2003), após anos
em que pesquisou o corsário Duguay-Trouin, cujos feitos e efeitos
chegaram até o Brasil, cometendo
a façanha que nem o Fernandinho Beira-mar conseguiu, a de
conquistar e ocupar o Rio de Janeiro e de cá só sair após levar ouro em barras e em pó (1.624 libras), quatro canastras cheias de
prata, 1.484 barricas de açúcar,
1.167 barbatanas de baleia, velas,
canhões, centenas de bois e outro
tanto de donzelas, enchendo com
tudo isso dois de seus maiores navios.
Eu sabia por alto da existência
desse francês por nossas bandas,
mas ignorava que era meu primo.
Realmente, tinha vaga noção de
ter remotíssimos parentes em
Saint-Malo, terra do corsário, que
o Antônio Torres visitou diversas
vezes. Numa delas, tirou foto junto à estátua de Duguay-Trouin,
monumento principal daquela cidade de onde vieram alguns
Conys para Marselha e, mais tarde, para o Brasil.
Pois era meu primo, segundo a
indiscutível opinião do Torres,
que começou a espalhar por aí o
parentesco, no qual, a contragosto, comecei a acreditar. O diabo é
se o nosso alcaide, César Maia,
em sabendo da ascendência pirata do pobre munícipe que sou eu,
resolver cobrar o que o meu primo roubou da cidade, as canastras de prata, as barras de ouro,
as barbatanas de baleias, os bois e
mulheres que, honestamente, não
sei onde arranjar.
De qualquer forma, parente é
parente e ninguém é mais parente
do que a mãe de todos nós. Mês
passado, aqui neste mesmo local,
escrevi uma crônica sobre a verdadeira história de um verdadeiro filho da puta. Usei a primeira
pessoa, que é tradicional no gênero da crônica, um gênero que os
entendidos colocam na escola romântica, onde o "eu", se não é o
personagem único, costuma ser o
mais frequente.
Até aí, tudo bem. Contei as vicissitudes de um menino feio, perebento, esfomeado, que era levado pela mãe para a casa dos diversos homens que a sustentaram, até que encalhou num apartamento do Catumbi, onde morava um oficial administrativo padrão M, da antiga Prefeitura do
Distrito Federal, que era aqui
mesmo no Rio, então capital da
República. Com isso, não mais
precisou do expediente que dava
nas ruas do baixo meretrício e
iniciou um período de dignidade,
que o filho não entendeu direito.
Evidente que é uma ficção, recurso de que a crônica se utiliza
aleatoriamente. Eça de Queiroz
inventou um Fradique Mendes,
Drummond de Andrade tinha
um amigo na roça que lhe escrevia cartas e mandava compotas
de doces mineiros.
Pois não é que um pastor presbiteriano, que edita um jornal
com tiragem de 40 mil exemplares, nele escreveu um artigo citando-me como exemplo, eu, filho de
meretriz, dera a volta por cima
etc. e tal, chegara à Academia
Brasileira de Letras.
Por mais heróico que tenha sido
meu passado, e por mais lisonjeiro que seja o artigo do pastor, infelizmente não sirvo para este tipo de exemplo, o de ter dado a
volta por cima de um destino
cruel. Minha mãe, quando era
criança, foi da Cruzada Eucarística; jovem, foi filha de Maria até o
casamento; e, casada, foi do
Apostolado da Oração, onde se
aposentou após anos em que usava aquela fita vermelha e larga
das devotas. Nas quartas-feiras
de cinzas, todos as imagens de
nossa casa amanheciam cobertas
de panos roxos, em respeito à
Quaresma, na qual ela jejuava,
tomando uma canjica ao leite
duas vezes por dia, enquanto o
pai, que nunca jejuava, aproveitava as sobras da canjica e se fartava.
Primo em Portugal devendo um
cavalo ao Reino, primo corsário
que saqueou o Rio, levando-nos
ouro, prata, bois e mulheres, finalmente, a mãe que o pastor
presbiteriano acreditou ser verdadeira. Tudo isso me faz desconfiar
dos parentes, que, afinal, rimam
com serpentes, de acordo com
aquele terrível e gostoso filme do
Mario Monicelli.
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