São Paulo, Quarta-feira, 15 de Setembro de 1999
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Peter Gay derruba Mozart no divã

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

"Há uma dimensão na música que impede o conhecimento último e se defende ou se desvia dos nossos hábitos cognitivos mais reverenciados. É como se estivéssemos na crista de uma onda de compreensão que já deixou a natureza para trás. (...) Mas continuamos tão ignorantes do fundamental quanto qualquer ser humano."
Este é o romancista Saul Bellow, falando da música de Mozart (1756-1791). Conhecimento e ignorância são temas que se repetem na tradição de comentários, fadada a repetir esse gesto de autocancelamento. Repetem-se, de outro modo, no conhecimento e na ignorância de cada biografia, como a nova breve vida de Mozart por Peter Gay.
A obra explica a vida, mais do que a vida a obra; e mesmo dessa perspectiva o que se inexplica tende a ser mais forte. A tentação do biógrafo, naturalmente, é o contrário. E um biógrafo de inspiração psicanalítica -historiador e intérprete da psicanálise, autor de uma renomada biografia de Freud- tem nos elementos da vida de Mozart um prato cheio para refletir sobre o poeta e a fantasia, à luz do romance familiar.
Não causa espanto, assim, que o livro venha propor "o conflito pai-filho" como a "obsessão... mais profunda", que "guiou as forças criativas de Mozart". Que Leopold Mozart foi "professor, colaborador, conselheiro, enfermeiro, secretário, empresário, relações-públicas e o principal membro da claque" do filho é mais do que sabido; e o conflito edipiano foi exaustivamente estudado antes por Maynard Solomon, em "Mozart: A Life" (1995).
Também não chega a ser uma novidade salientar "a preocupação de Mozart com o ânus e os produtos anais"; e ninguém discorda de que "isso não revela muito acerca de Mozart", embora nem todos vão tão longe a ponto de afirmar que "ele se rendia mais prontamente do que muitos ao impulso regressivo das fixações anais". Descrições como essa acabam fazendo mal à biografia e à psicanálise: o livro se entrega à sedução da explicação e a psicanálise vira prontuário. Nesses momentos, a música parece tão distante da vida quanto a vida do texto. Felizmente, são exceções e não a regra, numa prosa que não brilha muito, mas tem bastante informação para oferecer, resumindo o trabalho de gerações de biógrafos.
O menino-prodígio, que tocava piano e compunha aos 5 anos, aprendeu violino sozinho com 7, escreveu sinfonias com 9 e passou a infância e a adolescência encantando as cortes da Europa; o homem crescido, entre gênio melancólico e bufão; as intrigas com o libretista libertino Da Ponte e com o rival Salieri; a rapidez proverbial para escrever música proverbial recebida com proverbial admiração (e/ou incompreensão); a abundância e a falta de dinheiro; o envolvimento com a maçonaria; a encomenda anônima do "Réquiem", escrito supostamente para si mesmo: todas essas lendas, ou quase-lendas, são recolhidas e, sempre que possível, diminuídas por Gay, que é um autor comedido e cético.
Tanto desejo de acerto acaba minado, em parte, pela tradução, que contém desde erros factuais (a "Sinfonia K. 200" é a nº 28, não 29) até deslizes ("Bastien und Bastienne" é uma ópera em um ato, não "para um ator") e aberrações musicológicas ("por oito compassos" vira "para oito medidas", e "mudanças de tonalidade" vira "alternâncias de claves"). É uma pena que a revisão não tenha corrigido essas gafes, que incomodam, mas não chegam a comprometer o livro. Tanto mais porque a discussão sobre a música em si é mínima e superficial.
A curiosidade sobre Mozart não tem fim. Quem não quer saber algo mais da vida do homem que escreveu "Don Giovanni", a "Sinfonia nº 40" e a "Sinfonia Concertante"? A música "se defende" e "se desvia"; mas a ignorância é uma ânsia e o conhecimento não se cansa da própria obtusidade. Cada biografia, então, a seu modo -essa também- vem sublinhar o que há de inatingível em Mozart, produto de uma vida igual às outras, convertida em música como nenhuma outra.


Avaliação:   
E-mail: nestro@uol.com.br

Livro: Mozart
Autor: Peter Gay
Tradutor: José Antonio Arantes


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