São Paulo, sábado, 15 de setembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Da boca para fora

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Há um costume infeliz que a crítica muitas vezes toma emprestado dos relacionamentos humanos: fala-se dos mais próximos e ignora-se o resto.
É a prática do compadrio. As afinidades são criadas por proximidades, interesses e simpatias pessoais que pouco têm a ver com as obras. O crítico simpatiza com um autor e dá à sua obra, pelos piores motivos, um crédito que ela nem sempre merece. Ou ignora uma obra importante pela indiferença ou antipatia que lhe desperta o autor, exterior ao círculo dos seus conhecimentos ou relações.
Para evitar esse tipo de injustiça, procurei afastar a impressão de artificialidade que me desperta a imagem da francesa Yasmina Reza divulgada pela mídia. Procurei me concentrar na obra para tentar compreender o seu sucesso internacional, mas talvez não tenha sido feliz ao escolher a novela "Uma Desolação", de 1999, que acaba de ser publicada no Brasil pela Rocco.
Reza, 44, alcançou um retumbante sucesso mundial com a peça "Arte" (1994), montada no Brasil há três anos. Não conheço as suas peças a não ser por comentários elogiosos na imprensa (assim como "Arte", "Três Versões da Vida", do ano passado, parece ter um argumento engenhoso), mas a julgar por "Uma Desolação" só me resta pensar que a fama da autora, que também é atriz e diretora de teatro, ou é inercial ou pouco tem a ver com a sua obra em prosa. Porque "Uma Desolação" é um lugar-comum.
A autora inverteu o princípio kafkiano. A novela é o monólogo de um homem de 73 anos ressentido com a velhice, com o mundo que o cerca e sobretudo com o filho de 38 anos. O livro é uma espécie de "carta ao filho", um acerto de contas. O lugar-comum não se manifesta na construção das frases (não há nenhuma pieguice), mas no todo, na impressão de banalidade do que diz o velho com ares de originalidade, pois é impossível dissociá-lo de porta-voz das idéias da autora, já que também não há nenhuma ironia.
Reza é uma escritora moral. Em "Uma Desolação", a mensagem diz respeito a um conflito de gerações. O pai não compreende o hedonismo do filho, que passa a vida viajando à procura da felicidade na paz, no conforto e no prazer. Seu problema com o filho é vê-lo adaptado a um mundo que ele repudia e do qual já não faz parte: "Gerei um homem adaptado".
O conflito de gerações revela uma mudança qualitativa na relação com o mundo, para pior. Onde o filho procura adaptar-se, antes o pai procurava resistir e combater. Para o velho, a felicidade é impossível. Por ser adaptação, ela é o contrário da vida, sinônimo de morte.
E é no mínimo curioso que essa mesma mudança esteja representada de uma forma involuntária no texto de Yasmina Reza, a despeito de sua moral mais aparente.
A novela começa com o pai dizendo: "O jardim sou eu". Lembra vagamente Marguerite Duras e um tempo em que a literatura buscava novas maneiras de desafiar os seus limites e de dizer o indizível -Reza já havia alardeado ter sido influenciada por Nathalie Sarraute, por exemplo. "Uma Desolação" trata do desencanto e da constatação de que um tempo se perdeu e os sentidos mudaram. Mas o que mudou entre o tempo de Duras e o de Yasmina Reza? O que se vulgarizou? O texto ou o ponto de vista do leitor?
Provavelmente os dois. Ao contrário de Duras, que foi uma escritora restrita a um universo exclusivo de leitores até o surpreendente sucesso internacional de "O Amante", Reza escreve num mundo em que o sucesso já é esperado -e portanto perseguido. A sua "originalidade" não pode ultrapassar os limites previstos do reconhecimento. O que termina por confundi-la com o lugar-comum.
Nesse sentido, o conflito de gerações que o livro pretende expor seria ainda mais eloquente se não fosse pelo fato de o texto soar um tanto falso ao assumir a inadaptação do pai e narrador em relação a este mundo vulgarizado e "feliz", quando é ao filho que a autora no fundo se identifica. A adequação do seu texto à nova ordem é evidente, a despeito da mensagem que pretende passar.
Vem daí a impressão de insipidez no "desespero" do velho. Porque, embora Reza diga que 90% de suas obras sejam autobiográficas, aqui lhe falta um mínimo de verdade. Sua moral não convence. É da boca para fora.


Uma Desolação
Une Désolation
  
Autor: Yasmina Reza
Tradução: Sérgio Guimarães
Editora: Rocco
Quanto: R$ 18 (97 págs.)




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