|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
Da boca para fora
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Há um costume infeliz que a
crítica muitas vezes toma
emprestado dos relacionamentos humanos: fala-se dos mais
próximos e ignora-se o resto.
É a prática do compadrio. As
afinidades são criadas por proximidades, interesses e simpatias pessoais que pouco têm a
ver com as obras. O crítico simpatiza com um autor e dá à sua
obra, pelos piores motivos, um
crédito que ela nem sempre merece. Ou ignora uma obra importante pela indiferença ou antipatia que lhe desperta o autor,
exterior ao círculo dos seus conhecimentos ou relações.
Para evitar esse tipo de injustiça, procurei afastar a impressão
de artificialidade que me desperta a imagem da francesa Yasmina Reza divulgada pela mídia.
Procurei me concentrar na obra
para tentar compreender o seu
sucesso internacional, mas talvez não tenha sido feliz ao escolher a novela "Uma Desolação",
de 1999, que acaba de ser publicada no Brasil pela Rocco.
Reza, 44, alcançou um retumbante sucesso mundial com a
peça "Arte" (1994), montada no
Brasil há três anos. Não conheço
as suas peças a não ser por comentários elogiosos na imprensa (assim como "Arte", "Três
Versões da Vida", do ano passado, parece ter um argumento
engenhoso), mas a julgar por
"Uma Desolação" só me resta
pensar que a fama da autora,
que também é atriz e diretora de
teatro, ou é inercial ou pouco
tem a ver com a sua obra em
prosa. Porque "Uma Desolação" é um lugar-comum.
A autora inverteu o princípio
kafkiano. A novela é o monólogo de um homem de 73 anos
ressentido com a velhice, com o
mundo que o cerca e sobretudo
com o filho de 38 anos. O livro é
uma espécie de "carta ao filho",
um acerto de contas. O lugar-comum não se manifesta na construção das frases (não há nenhuma pieguice), mas no todo, na
impressão de banalidade do que
diz o velho com ares de originalidade, pois é impossível dissociá-lo de porta-voz das idéias da
autora, já que também não há
nenhuma ironia.
Reza é uma escritora moral.
Em "Uma Desolação", a mensagem diz respeito a um conflito
de gerações. O pai não compreende o hedonismo do filho,
que passa a vida viajando à procura da felicidade na paz, no
conforto e no prazer. Seu problema com o filho é vê-lo adaptado a um mundo que ele repudia e do qual já não faz parte:
"Gerei um homem adaptado".
O conflito de gerações revela
uma mudança qualitativa na relação com o mundo, para pior.
Onde o filho procura adaptar-se, antes o pai procurava resistir
e combater. Para o velho, a felicidade é impossível. Por ser
adaptação, ela é o contrário da
vida, sinônimo de morte.
E é no mínimo curioso que essa mesma mudança esteja representada de uma forma involuntária no texto de Yasmina
Reza, a despeito de sua moral
mais aparente.
A novela começa com o pai dizendo: "O jardim sou eu". Lembra vagamente Marguerite Duras e um tempo em que a literatura buscava novas maneiras de
desafiar os seus limites e de dizer
o indizível -Reza já havia alardeado ter sido influenciada por
Nathalie Sarraute, por exemplo.
"Uma Desolação" trata do desencanto e da constatação de
que um tempo se perdeu e os
sentidos mudaram. Mas o que
mudou entre o tempo de Duras
e o de Yasmina Reza? O que se
vulgarizou? O texto ou o ponto
de vista do leitor?
Provavelmente os dois. Ao
contrário de Duras, que foi uma
escritora restrita a um universo
exclusivo de leitores até o surpreendente sucesso internacional de "O Amante", Reza escreve num mundo em que o sucesso já é esperado -e portanto
perseguido. A sua "originalidade" não pode ultrapassar os limites previstos do reconhecimento. O que termina por confundi-la com o lugar-comum.
Nesse sentido, o conflito de gerações que o livro pretende expor seria ainda mais eloquente
se não fosse pelo fato de o texto
soar um tanto falso ao assumir a
inadaptação do pai e narrador
em relação a este mundo vulgarizado e "feliz", quando é ao filho que a autora no fundo se
identifica. A adequação do seu
texto à nova ordem é evidente, a
despeito da mensagem que pretende passar.
Vem daí a impressão de insipidez no "desespero" do velho.
Porque, embora Reza diga que
90% de suas obras sejam autobiográficas, aqui lhe falta um
mínimo de verdade. Sua moral
não convence. É da boca para
fora.
Uma Desolação
Une Désolation
Autor: Yasmina Reza
Tradução: Sérgio Guimarães
Editora: Rocco
Quanto: R$ 18 (97 págs.)
Texto Anterior: "Quando a Sombra Descola do Chão": O amor por aviões em oito histórias Próximo Texto: Panorâmica - Poesia: Fernando Paixão lança "Poeira" na Cultura Índice
|