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CONTARDO CALLIGARIS
Antes sós do que (mal) acompanhados?
Acontece nestes dias, em
Bento Gonçalves (RS), o
quarto Congresso Brasileiro de
Dinâmica Interpessoal, organizado pela Sociedade Brasileira de
Dinâmica dos Grupos. Fui convidado a palestrar na abertura, e a
ocasião me levou a refletir um
pouco sobre grupos e indivíduos.
A literatura é o grande repertório moderno dos ideais, dos sonhos e mesmo dos pensamentos
morais. O primeiro romance desse
repertório é um sonho de solidão:
"Robinson Crusoé", de Daniel Defoe, publicado em 1719. Desde então, a história do homem que sobrevive numa ilha deserta continua nos interessando (a título de
exemplo, houve as versões literárias de Coetzee, "Foe", e de Michel
Tournier, "Sexta-Feira ou a Vida
Selvagem", e, recentemente, o filme de Robert Zemeckis, "Náufrago"). Detalhe: na ilha deserta, estamos dispostos a encontrar ao
menos um semelhante, Sexta-Feira, mas à condição de que seja claramente um subordinado.
Visto esse precedente literário
inaugural, não é estranho que sejamos criados, em geral, na desconfiança de tudo o que é grupo.
Há dois provérbios que me
acompanham desde a infância:
"Antes só do que mal acompanhado" (ou seja, sempre melhor
sozinho) e o ditado italiano "Chi
fa da sé fa per tre" (quem faz sozinho faz por três). Este último,
aliás, instilou-me uma antipatia
pela pedagogia do trabalho em
grupo, e isso atrapalhou a carreira escolar de meus filhos, pois
nunca parei de suspeitar que, se
João ou Maria viessem "para estudar junto com eles", seria só bagunça ou perda de tempo.
É claro, havia também o provérbio que diz que "a união faz a força". Mas faz a força a que preço?
Naqueles dias, a história recente
dizia que a massa era poderosa e
irresistível, mas irremediavelmente burra e cruel. Meus pais tinham conhecido os 20 anos do
fascismo italiano e assistiam ao
desastre do socialismo real, manifesto (para quem quisesse ler e ouvir) desde os anos 50. Não seria no
Brasil de hoje que eles seriam desmentidos: partidos e movimentos,
sobretudo quando têm uma forte
coesão, parecem ser sempre piores
do que as pessoas que os compõem.
Mais tarde, consagrei minha tese de doutorado a esta pergunta:
como é possível que homens
quaisquer, como você e eu, sejam
levados a funcionar como o braço
armado de genocídios e extermínios que repugnariam a suas
consciências se eles agissem sozinhos? Cheguei a uma conclusão
que tento resumir: não é por medo
de punições nem por convicção
ideológica. É porque, para o sujeito moderno, tanto a dúvida sobre
quem ele é quanto a incerteza sobre o que ele quer da vida são fardos imensos. Ele pode ser levado,
portanto, a sacrificar sua individualidade à condição de que o
grupo lhe ofereça a ilusória impressão de "saber" quem ele é e
quais são suas tarefas. Um homem qualquer pode colocar fogo
numa sinagoga repleta ou despedaçar nenês contra uma parede
para ganhar o "conforto" de sentir-se parte eficiente de um grupo.
A desconfiança dos grupos não
se desmentiu quando me ocupei
um pouco da função da turma e
da gangue (sobretudo adolescente) na violência criminosa. Por caminhos psicológicos um pouco diferentes, aqui também o grupo
potencializa o que há de pior em
alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos "compadres" é uma razão suficiente para esquecer-se de
inibições e freios morais básicos.
Os quatro rapazes que, em 1997,
em Brasília, queimaram vivo o índio Galdino, tomados um a um,
nunca teriam perpetrado aquele
horror.
Aparte: a sedução do grupo não
constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade
pelo conforto coletivo é, a meu ver,
uma agravante.
Dos grupos só se salvaria, em
princípio, a família: já em 1812, o
alemão J.D. Wyss publicara "Os
Robinsons Suíços", em que transformava a gloriosa solidão de Robinson Crusoé no ideal da vida familiar numa ilha deserta. A idéia
alimentou um seriado televisivo
americano nos anos 60. Na mesma linha e época, a família de
"Perdidos no Espaço" chamava-se
Robinson. Mas, desde os anos 70,
a antipsiquiatria inglesa (Laing,
Cooper, Esterson) mostrava que a
família era a fonte originária do
sofrimento neurótico e da loucura.
Em suma, durante os dois últimos séculos, inventamos utopias
coletivas, mas elas devoram nossa
liberdade; sonhamos com o calor
do lar, mas ele parece ser responsável por muitos de nossos males.
Atrás da "união que faz a força",
paira o medo (justificado) de que,
nessa união, nossa singularidade
perca o melhor de si. E, atrás do
sonho de Robinson, paira o pavor
(também justificado) de uma solidão sem conforto.
Para lidar com esse paradoxo,
quando sou chamado a "ajudar"
grupos em dificuldade (famílias e
casais), adoto um pequeno artifício: em vez de explorar as falhas
(ou seja, em vez de perguntar o
que cada um estima estar perdendo por causa da relação), tomo, às
vezes, o caminho oposto e pergunto o que cada um estima estar ganhando na convivência com o outro.
É pouco, mas é um jeito de as
pessoas se lembrarem de que, apesar de todos os pesares, vale a pena pagar um preço para elas não
viverem sozinhas. Claro, depende
do preço.
@ - ccalligari@uol.com.br
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