LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Robert Wilson produz um teatro de visões, que nasce como vislumbre na sua imaginação e torna-se miragem aos olhos dos seus espectadores. Se ele já não nos surpreende, ainda nos maravilha.
A produção francesa de "Quartett" que veio ao Brasil reapresenta a montagem que Wilson fez em 1988, no American Repertory Theater. O que fascina o artista norte-americano na dramaturgia de Heiner Müller é o seu caráter aberto, que resiste às encenações protocolares e torna impossível dar um sentido unívoco à sua poética.
Em "Quartett", Müller não adapta exatamente "Ligações Perigosas" -romance epistolar de Choderlos de Laclos do século 18-, mas se serve das viperinas personalidades de seus protagonistas para evocar os aspectos animalescos da volúpia sexual. Wilson tampouco traduz Müller para a cena. Ele utiliza aquelas palavras como matéria-prima bruta e as dispõe no espaço, expandidas como som, cor e gesto.
O texto aparece fraturado em oito cenas. As falas do casal de aristocratas libertinos, Valmont e Merteuil, são escandidas sempre em alta velocidade, muitas vezes repetindo-se, como a afastar os espectadores de qualquer trama e a estimular a fruição do contínuo jogo de cores que tinge o fundo branco da cena, ou a precisa movimentação dos atores, demarcados eles próprios por cores básicas e vivas.
Isabelle Huppert de azul, e Ariel Garcia Valdès, de vermelho, são os únicos que falam, pois os outros três atores em cena são, talvez, apenas emanações. É emocionante ver Huppert, uma rainha na interpretação naturalista, dispor-se a construir com o corpo e uma contínua modulação de voz, que vai do grunhido animal ao grito, um registro de bufonaria. Mas esse Müller cômico, que Wilson pontua com uma sonoplastia próxima do circense, não deixa de corroer a alma.
Um mínimo de elementos -cadeiras, um banco-pantera, uma cortina transparente, uma forca e um aquário- permite uma complexa escritura cênica fortemente turbinada pela luz.
Se o efeito obtido é mágico, Wilson não se furta de revelar seus mecanismos nas mudanças entre as cenas. Não se busca a ilusão, mas uma beleza quase convulsiva.