São Paulo, Sexta-feira, 15 de Outubro de 1999
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ARTES PLÁSTICAS
Exposição no Centro de Arte Hélio Oiticica é a mais completa da carreira de Nuno Ramos e traz dois trabalhos inéditos
Obra suscita "decifra-me ou devoro-te"

JULIANA MONACHESI
enviada especial ao Rio


O que é, o que é? Preenche, expele, transborda, escorre, pinga, apaga. Por mais matéria que possua, mais desmaterializado fica. Descaracteriza tudo mas mantém as singularidades. O enigma Nuno Ramos pode ser decifrado na exposição do artista plástico, no Centro de Arte Hélio Oiticica.
Seu Arnaldo, o oleiro que construiu cuidadosamente cada um dos vasos que se vêem logo à entrada da mostra, não hesitou muito em decifrar o trabalho de Nuno tão logo soube que seus vasos seriam espatifados a golpes de marreta para perfazer a instalação "Vaso Ruim" do artista: "Tu és maluco mesmo".
Menos radicais que essa decifração são as dos curadores da primeira panorâmica do criador de "111", instalação sobre o massacre do Carandiru exposta na Bienal de 94. Alberto Tassinari e Rodrigo Naves caracterizam a obra de Nuno como "união de impossíveis" e "concentração de forças", respectivamente.
Impossíveis são desde os elementos que Nuno incorpora às pinturas -espelhos, tecidos, folhas, tinta, metais, vaselina, parafina- até os conceitos que ele conjuga em certas instalações, como visão e cegueira, representados em "Mácula": esculturas feitas de sal e breu têm como fundo paredes cobertas de textos em braile de letras gigantes.
Embora reúna trabalhos de todas as fases do artista, a exposição no Centro de Arte Hélio Oiticica deixa de fora obras importantes como "111" e "Craca", escultura que ele apresentou na Bienal de Veneza de 1995.
Isso porque a seleção procurou não fragmentar trabalhos ("Mácula" é o único de que se apresenta apenas um excerto) e respeitar as condições do prédio, construção de estilo neoclássico localizada no centro histórico do Rio.
As 18 obras expostas vão das pinturas, linguagem em que Nuno estreou nas artes plásticas na década de 80, integrando o grupo Casa 7, às mais recentes esculturas, como "Manorá Preto" e "Casco". Esta última é uma obra inédita que faz referência à história do navegador Shackelton, que quase descobriu o Pólo, mas teve seu barco preso no gelo.
O outro trabalho inédito da mostra é uma pintura sem título, em que o artista radicaliza ainda mais a espacialidade sempre presente em seus quadros. Apesar do volume, Nuno faz questão de manter o chassi na obra: "Eu trabalho na fronteira dos gêneros, como nos quadros, que têm uma coisa já no limite do quadro, mas acho que ainda é quadro; me agrada pensar que ainda seja, que as relações de cor, as relações com o plano ainda estejam ali vivas".
Entender sua obra dentro da tradição da pintura "matérica", imaginando as esculturas de toneladas como mero prolongamento dessa linguagem pode ser uma leitura rasa. "Eu não me deixei identificar com a matéria apenas pelo peso, embora também muito por isso, quer dizer, o ar também é matéria."
"Acho que a região que eu habito é uma região um pouco de fusão das coisas. Talvez por isso a vaselina me interesse muito, porque ela é intermediária: eu gosto das coisas meio crepusculares, entre noite e dia, entre sólido e líquido, entre velho e novo; nas cores sempre os tons, não as cores, sempre a coisa um pouco assim na borda", explica.
Nuno exemplifica descrevendo "Manorá Preto", uma escultura de granito escuro com um sulco no meio preenchido por vaselina misturada a cinzas, em que está mergulhada outra peça de granito, que provoca o transbordamento da vaselina:
"A pedra do jeito que está eu detesto, mas quando a vaselina cai, a pedra vira outra coisa, ela amolece, o contorno externo some, a matéria serve para desmaterializar também, para criar similitudes, apagamentos, para preencher o que estava vazio. Não é uma chamada à corporiedade, esses terrenos meio pantanosos é que eu acho bonito. Está tudo meio se fundindo em tudo como se fosse aquela hora em que a individuação ainda existe mas as propriedades já estão se relacionando com as do corpo ao lado".
Na mostra, a fronteira entre individuação e fusão pode ser apreciada também da perspectiva da troca de qualidades. Na instalação "Vidrotexto", por exemplo, as folhas de vidro que repousam sobre o texto escrito no chão com vaselina foram moldados em folhas secas de palmeira.
Nuno explica que trabalha com uma idéia de "forma enfraquecida", ou seja, a forma nunca se determina inteiramente, não se encarna em um objeto singular. "Isso acho que tem a ver com uma certa dificuldade de universalização que o mundo sofre hoje."
Para ele, a realização desta panorâmica fornece pela primeira vez a chance de relacionar obras. "No fundo é uma oportunidade para encontrar uma certa identidade estilística em um trabalho que se caracteriza por uma certa fratura estilística", diz.
Depois do Centro de Arte Hélio Oiticica, onde fica até 27 de novembro, a exposição de Nuno segue para São Paulo. Vai ser apresentada entre janeiro e março de 2000 no MAM, devido a uma parceria feita entre as instituições.
Segundo a diretora do Centro de Arte, Vanda Klabin, os próximos artistas que devem expor lá são Amilcar de Castro, Iole de Freitas e Miguel Rio Branco.


Exposição: Nuno Ramos Onde: Centro de Arte Hélio Oiticica (r. Luis de Camões, 68, centro, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/232-2213) Quando: ter. a sex., 12h às 20h; sáb. e dom., 11h às 17h. Até 27/11 Quanto: entrada franca




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