São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

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RODAPÉ

Praças de guerra surda

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Cedo, Ricardo Lísias sentou praça como escritor. Seu primeiro romance, "Cobertor de Estrelas" (1999), anunciava um temperamento literário que as novelas "Dos Nervos" e "Capuz", ambas de 2001, não contrariavam e "Duas Praças", romance recém-lançado, afina e confirma. Volta nele uma escrita despojada, apoiada em repetições e elipses que garantem, sim, a coesão da estrutura, mas à força de abrir espaço para uma desordem entrópica, prestes a se impor.
Ameaça à clareza e à simplificação voluntária da linguagem, a incorporação desta espiral destrutiva é evidente resposta aos assuntos tratados: as múltiplas feridas expostas da existência urbana, contemporânea e brasileira que pedem uma forma de exposição igualmente perturbada.
Em "Cobertor de Estrelas", o artifício foi adotar a intimidade do olhar infantil de um menino de rua às voltas com o aprendizado da escrita e de expedientes práticos de sobrevivência precária, fonte involuntária de humor grotesco e acre, nos encontrões ora com a indiferença, ora com as boas intenções, institucionalizadas ou não, da massa urbana.
Esta comicidade cruel, desnudadora, repete-se em "Dos Nervos", novela em que dois fios narrativos, descontínuos e paralelos, colocam, lado a lado, um imaginário "match" de xadrez pelo título mundial -em que o desafiante encarna a simpatia pela derrocada do antigo regime soviético- e o progressivo descontrole mental de uma jovem professora universitária, sozinha e sem afetos.
Enquanto o enxadrista aproxima-se de uma vitória que, acompanhada da ascensão de Gorbatchov, lava-lhe a alma, a moça, encastelada na inviolabilidade da intimidade doméstica, assiste à progressiva invasão de suas defesas pelo caos exterior, ora sob a forma dos cuidados opressivos de uma mãe superprotetora, ora sob o aspecto de um ladrão/amante, desejado e odiado, imaginário e onipresente. Ordem, plano e método alternam com desequilíbrio, esgarçamento e ruínas, sob o registro neutro da progressão numérica que identifica os capítulos sucessivos.
Tocando no tema da identidade que se dissolve e tenta se refazer contra a contundência das ameaças exteriores, agora associada à arbitrariedade e violência extremas da tortura, "Capuz" reatava com o fio perdido de certa militância pelos direitos humanos, evidente desde o livro de estréia. É na mediação lingüística da relação com o mundo que a crise moderna da constituição da subjetividade se revela em toda a sua agudeza.
Se, em "Cobertor de Estrelas", o menino abandonado é retratado em seu esforço em dominar as letras contra todas as circunstâncias adversas, em "Capuz", o prisioneiro, permanentemente vendado, tenta refundar ficcionalmente seus liames com o mundo, reinventando tempo e espaço, desdobrando-se em vários para vencer a solidão e apoiando-se em catálogos espúrios de palavras para preservar a lucidez.
"Duas Praças" traz a brutalidade da existência citadina novamente em duplo registro, alternado: os descaminhos de um estudante de pós-graduação, tentando localizar Marita, uma colega vítima da ditadura argentina e procurada pelas "abuelas" da Plaza de Mayo, e a torrente de preconceitos e lugares-comuns que compõem a vida interior de Maria, uma mulher de baixa classe média, entreouvindo conversas no ponto de ônibus e fantasiando uma sagrada família burguesa com o Manequim, objeto de seus amores e rancores imaginários.
A burocracia universitária sai mal no retrato, perdida em meio à sede pelo pequeno poder, vaidades facilmente arranhadas e uma sociabilidade frágil, cimentada pela maledicência. Paradoxalmente, a caricatura peca, contudo, por certa polidez excessiva, quase correção política. O ponto alto do romance está na desarticulação discursiva de Maria, em que os "raciocínios" acabam torcidos em seus contrários. Neles, o procedimento da repetição, esvaziamento e inversão a um só tempo, encontra sua eficácia estilística, revelando uma agudeza que o mero registro não alcança. Neles, Lísias está em casa.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Duas Praças
   
Autor: Ricardo Lísias
Editora: Globo
Quanto: R$ 25 (128 págs.)


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