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RODAPÉ
Praças de guerra surda
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Cedo, Ricardo Lísias sentou
praça como escritor. Seu primeiro romance, "Cobertor de Estrelas" (1999), anunciava um temperamento literário que as novelas "Dos Nervos" e "Capuz", ambas de 2001, não contrariavam e
"Duas Praças", romance recém-lançado, afina e confirma. Volta
nele uma escrita despojada,
apoiada em repetições e elipses
que garantem, sim, a coesão da
estrutura, mas à força de abrir espaço para uma desordem entrópica, prestes a se impor.
Ameaça à clareza e à simplificação voluntária da linguagem, a incorporação desta espiral destrutiva é evidente resposta aos assuntos tratados: as múltiplas feridas
expostas da existência urbana,
contemporânea e brasileira que
pedem uma forma de exposição
igualmente perturbada.
Em "Cobertor de Estrelas", o artifício foi adotar a intimidade do
olhar infantil de um menino de
rua às voltas com o aprendizado
da escrita e de expedientes práticos de sobrevivência precária,
fonte involuntária de humor grotesco e acre, nos encontrões ora
com a indiferença, ora com as
boas intenções, institucionalizadas ou não, da massa urbana.
Esta comicidade cruel, desnudadora, repete-se em "Dos Nervos", novela em que dois fios narrativos, descontínuos e paralelos,
colocam, lado a lado, um imaginário "match" de xadrez pelo título mundial -em que o desafiante
encarna a simpatia pela derrocada do antigo regime soviético- e
o progressivo descontrole mental
de uma jovem professora universitária, sozinha e sem afetos.
Enquanto o enxadrista aproxima-se de uma vitória que, acompanhada da ascensão de Gorbatchov, lava-lhe a alma, a moça, encastelada na inviolabilidade da intimidade doméstica, assiste à progressiva invasão de suas defesas
pelo caos exterior, ora sob a forma
dos cuidados opressivos de uma
mãe superprotetora, ora sob o aspecto de um ladrão/amante, desejado e odiado, imaginário e onipresente. Ordem, plano e método
alternam com desequilíbrio, esgarçamento e ruínas, sob o registro neutro da progressão numérica que identifica os capítulos sucessivos.
Tocando no tema da identidade
que se dissolve e tenta se refazer
contra a contundência das ameaças exteriores, agora associada à
arbitrariedade e violência extremas da tortura, "Capuz" reatava
com o fio perdido de certa militância pelos direitos humanos,
evidente desde o livro de estréia. É
na mediação lingüística da relação com o mundo que a crise moderna da constituição da subjetividade se revela em toda a sua
agudeza.
Se, em "Cobertor de Estrelas", o
menino abandonado é retratado
em seu esforço em dominar as letras contra todas as circunstâncias adversas, em "Capuz", o prisioneiro, permanentemente vendado, tenta refundar ficcionalmente seus liames com o mundo,
reinventando tempo e espaço,
desdobrando-se em vários para
vencer a solidão e apoiando-se em
catálogos espúrios de palavras para preservar a lucidez.
"Duas Praças" traz a brutalidade da existência citadina novamente em duplo registro, alternado: os descaminhos de um estudante de pós-graduação, tentando localizar Marita, uma colega
vítima da ditadura argentina e
procurada pelas "abuelas" da Plaza de Mayo, e a torrente de preconceitos e lugares-comuns que
compõem a vida interior de Maria, uma mulher de baixa classe
média, entreouvindo conversas
no ponto de ônibus e fantasiando
uma sagrada família burguesa
com o Manequim, objeto de seus
amores e rancores imaginários.
A burocracia universitária sai
mal no retrato, perdida em meio à
sede pelo pequeno poder, vaidades facilmente arranhadas e uma
sociabilidade frágil, cimentada
pela maledicência. Paradoxalmente, a caricatura peca, contudo, por certa polidez excessiva,
quase correção política. O ponto
alto do romance está na desarticulação discursiva de Maria, em
que os "raciocínios" acabam torcidos em seus contrários. Neles, o
procedimento da repetição, esvaziamento e inversão a um só tempo, encontra sua eficácia estilística, revelando uma agudeza que o
mero registro não alcança. Neles,
Lísias está em casa.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Duas Praças
Autor: Ricardo Lísias
Editora: Globo
Quanto: R$ 25 (128 págs.)
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