São Paulo, quinta, 15 de outubro de 1998

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Reflexões de um neto de Keynes

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Existem textos que volta e meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas, paisagens e cidades históricas que nos acolhem e surpreendem toda vez que a elas retornamos. São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de infinita sugestividade.
Ao deleite subterrâneo da repetição -o reencontro periódico com o que nos apraz e comove- junta-se o prazer da surpresa inesperada e reveladora: o arrepio da descoberta de novos ângulos de leitura e possibilidades insuspeitas de fruição. O valor está na química do encontro.
Nesses dias de sombra e apreensão globais, quando o espectro da Grande Depressão dos anos 30 parece rondar a imaginação de tantos, resolvi aproveitar o último feriado para revisitar "As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos" -o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo economista britânico John Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea "Essays in Persuasion" do ano seguinte.
Não se trata de artigo técnico de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar do econômico e da ambição material na existência humana. O real e o ideal.
Quem nos fala aqui não é o macroeconomista da "Teoria Geral", mas o filósofo moral e político que sempre dedicou boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao convívio e interlocução ativa com filósofos como Bertrand Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.
O argumento central do ensaio divide-se em três partes: presente, passado e futuro.
Na primeira, Keynes faz um apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra os dois tipos de pessimismo que percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só uma ruptura violenta com o sistema oferecia salvação) e o dos reacionários (para quem qualquer ação inovadora era risco de ruptura do sistema).
A crise, sustenta, não era o reumatismo senil de um mundo caduco, mas sim as dores de crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas quais as ações e o ambiente prático vinham passando.
O propósito do ensaio, porém, não era discutir o presente e o futuro imediato. Era imaginar o que poderia vir mais à frente -indagar prospectivamente sobre o tipo de mundo para o qual tenderia a humanidade.
Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, "quais são as possibilidades econômicas para os nossos netos?".
A resposta parte de um retrospecto sinóptico contrastando, de um lado, a estagnação milenar da capacidade produtiva do homem no período que vai da pré-história a meados do século 18 e, de outro, a espantosa expansão verificada a partir de então.
Graças à força combinada da inovação técnica e da acumulação de capital (e apesar do forte crescimento populacional), o padrão médio de vida nos países civilizados havia quadruplicado em apenas dois séculos -um avanço material pelo menos duas vezes superior ao ocorrido em quatro milênios de labuta e evolução histórica até o advento da era moderna.
A continuidade desse avanço, antecipava Keynes, permitiria quadruplicar de novo o padrão de vida do cidadão comum no espaço de mais algumas décadas. Isso significava que "o problema econômico não é, se mirarmos o futuro, o problema permanente da espécie humana". Tudo indicava que ele poderia ser derrotado, em definitivo, em no máximo duas ou três gerações.
Mas, supondo que isso aconteça, ele pergunta, quais seriam as consequências? Como seria uma sociedade na qual o "problema econômico" -a escassez e a luta no mercado, a ansiedade financeira e a incerteza sobre o amanhã -estivesse de fato em plano secundário, "no assento traseiro que é o seu lugar", e não mais absorvesse o melhor de nossas energias materiais e morais?
"Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta importância social", refletia Keynes, "haverá grandes mudanças no código de ética". O ser humano estará em condições de se desfazer dos falsos princípios morais que o têm acorrentado por séculos a fio e que o levaram a enaltecer alguns dos mais repugnantes atributos, como a avareza, a cobiça e o calculismo financeiro, como se fossem grandes virtudes.
"Estaremos, então", prosseguia, "em condições de ousar atribuir ao motivo monetário o seu verdadeiro valor: O amor possessivo pelo dinheiro será reconhecido pelo que é, uma morbidez bastante repulsiva, uma dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se conduz com um arrepio para os especialistas em doenças mentais".
O centro de gravidade da vida humana deixaria de ser o "detestável amor ao dinheiro" e, em seu lugar, a arena dos corações e mentes passaria "a ser ocupada pelos nossos problemas reais -os problemas da vida e das relações humanas, da criação, da conduta e da religião".
No mundo dos netos de Keynes, os fins valeriam mais que os meios e o bem estaria acima do útil. A busca da melhor vida não se renderia ao sacrifício no altar da prudência. O valor econômico seria uma estrela menor na constelação dos valores humanos.
Ao terminar a releitura do texto fiquei pensando no que diria Keynes hoje em dia, à luz não só do que se passou desde sua época, mas da crise em que estamos metidos. Fiz uma conta simples: a geração dos netos de Keynes (nascido em 1883, sem filhos) chegaria à idade adulta nos anos 60 e 70.
A prosperidade dos anos dourados do pós-guerra e da globalização triunfante superou as suas mais altas expectativas. Alguns netos de Keynes nos anos 60, é verdade, bem que tentaram, mas o sonho revelou- se anêmico e naufragou.
A impressão que tenho é que estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando ela foi formulada. Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade? Pendurados ao "problema econômico" como preocupação obsessiva e perene da espécie humana?
O mundo clama por um novo Keynes (o economista), que mostre como domar a fera da globalização financeira. Mas o que mais nos falta, suspeito, é um outro Keynes (o filósofo moral) que elucide a natureza da compulsão econômica que a seus netos devora. Ou seria um novo Freud?



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