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Reflexões de um neto de Keynes
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Existem textos que volta e
meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas,
paisagens e cidades históricas
que nos acolhem e surpreendem
toda vez que a elas retornamos.
São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de
infinita sugestividade.
Ao deleite subterrâneo da repetição -o reencontro periódico com o que nos apraz e comove- junta-se o prazer da surpresa inesperada e reveladora:
o arrepio da descoberta de novos ângulos de leitura e possibilidades insuspeitas de fruição.
O valor está na química do encontro.
Nesses dias de sombra e
apreensão globais, quando o espectro da Grande Depressão
dos anos 30 parece rondar a
imaginação de tantos, resolvi
aproveitar o último feriado para revisitar "As Possibilidades
Econômicas para os Nossos Netos" -o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo
economista britânico John
Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea
"Essays in Persuasion" do ano
seguinte.
Não se trata de artigo técnico
de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar
do econômico e da ambição
material na existência humana. O real e o ideal.
Quem nos fala aqui não é o
macroeconomista da "Teoria
Geral", mas o filósofo moral e
político que sempre dedicou
boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao
convívio e interlocução ativa
com filósofos como Bertrand
Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.
O argumento central do ensaio divide-se em três partes:
presente, passado e futuro.
Na primeira, Keynes faz um
apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra
os dois tipos de pessimismo que
percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só
uma ruptura violenta com o
sistema oferecia salvação) e o
dos reacionários (para quem
qualquer ação inovadora era
risco de ruptura do sistema).
A crise, sustenta, não era o
reumatismo senil de um mundo
caduco, mas sim as dores de
crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam
acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas
quais as ações e o ambiente
prático vinham passando.
O propósito do ensaio, porém,
não era discutir o presente e o
futuro imediato. Era imaginar
o que poderia vir mais à frente
-indagar prospectivamente
sobre o tipo de mundo para o
qual tenderia a humanidade.
Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, "quais são
as possibilidades econômicas
para os nossos netos?".
A resposta parte de um retrospecto sinóptico contrastando,
de um lado, a estagnação milenar da capacidade produtiva
do homem no período que vai
da pré-história a meados do século 18 e, de outro, a espantosa
expansão verificada a partir de
então.
Graças à força combinada da
inovação técnica e da acumulação de capital (e apesar do forte
crescimento populacional), o
padrão médio de vida nos países civilizados havia quadruplicado em apenas dois séculos
-um avanço material pelo menos duas vezes superior ao
ocorrido em quatro milênios de
labuta e evolução histórica até
o advento da era moderna.
A continuidade desse avanço,
antecipava Keynes, permitiria
quadruplicar de novo o padrão
de vida do cidadão comum no
espaço de mais algumas décadas. Isso significava que "o problema econômico não é, se mirarmos o futuro, o problema
permanente da espécie humana". Tudo indicava que ele poderia ser derrotado, em definitivo, em no máximo duas ou
três gerações.
Mas, supondo que isso aconteça, ele pergunta, quais seriam
as consequências? Como seria
uma sociedade na qual o "problema econômico" -a escassez
e a luta no mercado, a ansiedade financeira e a incerteza sobre o amanhã -estivesse de fato em plano secundário, "no assento traseiro que é o seu lugar", e não mais absorvesse o
melhor de nossas energias materiais e morais?
"Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta
importância social", refletia
Keynes, "haverá grandes mudanças no código de ética". O
ser humano estará em condições de se desfazer dos falsos
princípios morais que o têm
acorrentado por séculos a fio e
que o levaram a enaltecer alguns dos mais repugnantes
atributos, como a avareza, a cobiça e o calculismo financeiro,
como se fossem grandes virtudes.
"Estaremos, então", prosseguia, "em condições de ousar
atribuir ao motivo monetário o
seu verdadeiro valor: O amor
possessivo pelo dinheiro será reconhecido pelo que é, uma morbidez bastante repulsiva, uma
dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se
conduz com um arrepio para os
especialistas em doenças mentais".
O centro de gravidade da vida
humana deixaria de ser o "detestável amor ao dinheiro" e,
em seu lugar, a arena dos corações e mentes passaria "a ser
ocupada pelos nossos problemas reais -os problemas da vida e das relações humanas, da
criação, da conduta e da religião".
No mundo dos netos de Keynes, os fins valeriam mais que
os meios e o bem estaria acima
do útil. A busca da melhor vida
não se renderia ao sacrifício no
altar da prudência. O valor econômico seria uma estrela menor na constelação dos valores
humanos.
Ao terminar a releitura do
texto fiquei pensando no que
diria Keynes hoje em dia, à luz
não só do que se passou desde
sua época, mas da crise em que
estamos metidos. Fiz uma conta simples: a geração dos netos
de Keynes (nascido em 1883,
sem filhos) chegaria à idade
adulta nos anos 60 e 70.
A prosperidade dos anos dourados do pós-guerra e da globalização triunfante superou as
suas mais altas expectativas.
Alguns netos de Keynes nos
anos 60, é verdade, bem que
tentaram, mas o sonho revelou-
se anêmico e naufragou.
A impressão que tenho é que
estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando
ela foi formulada. Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade?
Pendurados ao "problema econômico" como preocupação obsessiva e perene da espécie humana?
O mundo clama por um novo
Keynes (o economista), que
mostre como domar a fera da
globalização financeira. Mas o
que mais nos falta, suspeito, é
um outro Keynes (o filósofo
moral) que elucide a natureza
da compulsão econômica que a
seus netos devora. Ou seria um
novo Freud?
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