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MARCELO COELHO
As eleições americanas e o deboche do mordomo
Estamos nos divertindo
muito com a confusão nas
eleições americanas. Correm piadinhas, como a de que a OEA deveria nomear uma comissão para
garantir a lisura do pleito, com
Fujimori dirigindo os trabalhos.
Dá bastante prazer, é claro,
quando um país que dita regras
para o resto do mundo se atrapalha com as próprias. Considerando-se defensores internacionais
da democracia -e de outros valores universais, como o livre-comércio, as patentes farmacêuticas, o McDonald's e os antigos seriados de Lucille Ball-, os Estados Unidos se vêem numa situação constrangedora.
Têm de admitir pelo menos um
"exotismo", uma "particularidade cultural", um hábito irracional
de sua "etnia": a sobrevivência
desse anacrônico colégio eleitoral,
que pode preferir Bush, quando
Gore teve mais votos.
E aqui, no Brasil, observamos
com certo deboche que nossa democracia seria "mais adiantada"
que a norte-americana, já que temos voto eletrônico em 100% das
urnas.
Há algo de servil nessa excitação humorística; é o mordomo assistindo com superioridade momentânea e discreta euforia a crise conjugal na casa chique, os papelões do doutor, as baixarias da
madame.
Não tenho nenhuma simpatia
pelos Estados Unidos, mas o imbróglio desta eleição parece-me
bem pouco ridículo. Não que seja
grave, tampouco. Uma das melhores coisas do episódio é justamente não haver nenhuma "crise" mais séria à vista, em meio ao
impasse eleitoral. Só isso já aumenta meu respeito pelas instituições americanas.
O mais sugestivo no caso, entretanto, talvez diga respeito ao próprio conceito que temos de democracia. Vou verificando, à medida
que prossegue o debate em torno
das urnas de Palm Beach, que
"democracia" não é uma palavra
tão simples assim.
Podemos entendê-la -e é o
mais correto- como sendo simplesmente o princípio do respeito
à vontade popular. Nesse caso, tudo fica claro: a democracia americana é falha, pois se Gore teve
mais votos, deveria ser o presidente; o colégio eleitoral tem de
ser extinto e ponto final.
Penso, contudo, em outros fatores que compõem o sistema democrático, e talvez com isso o debate se complique. Sem dúvida, é
também um fator importante a
estabilidade institucional; o fato
de não se mudarem as regras a
cada eleição conta bastante para
considerarmos se um país é democrático ou não. O fato de que
seja dificílimo alterar a Constituição americana certamente determinou a sobrevivência desse extravagante colégio eleitoral; mas
é também decisivo para que as
disputas de poder se dêem segundo regras sólidas e conhecidas.
Apesar das irregularidades que
se noticiam nas eleições da Flórida, daquela cédula eleitoral maluca, cheia de furinhos, até nisso
há um aspecto sério a considerar.
Claro que podemos preferir nossa
urna eletrônica, válida em todos
os lugares do país. Mas também
faz parte do conceito de democracia a idéia de autogoverno, de poder local; que cada Estado, município, condado ou seja lá que nome tenha, possa dispor de grande
autonomia decisória face ao sistema federal, há nisso um componente democrático importante,
que conhecemos muito pouco.
Observo de passagem que o famoso desinteresse dos americanos
pelas eleições presidenciais -só
metade dos eleitores votam de fato- também costuma ser objeto
de interpretações provavelmente
um tanto parciais. Se o desinteresse é preocupante, no que revela
de indiferença e despolitização,
podemos pelo menos perguntar se
não corresponde, por outro lado,
à preponderância de formas locais de participação e decisão política.
Surge, de qualquer modo, uma
grande confusão. É possível que
muitos eleitores tenham errado
seu voto porque a cédula estava
malfeita. De forma tipicamente
americana, já correm ações nos
tribunais exigindo que o pleito seja anulado e outras querendo
anular essa exigência; nada garante que num lugarejo qualquer
de Wisconsin ou Omaha os republicanos não possam recuperar o
que ameaçam perder em Palm
Beach. Não sei; minhas informações sobre o assunto são precárias.
Pode-se ver aqui mais um aspecto importante da democracia
americana: o fato de que há sempre alguém reclamando seus direitos. Se nos acostumamos a dizer que tudo no Brasil termina
em pizza, lá, tudo, até um escorregão, termina nos tribunais. Com
resultados muitas vezes ridículos
e absurdos, certamente. Nada seria mais típico dos Estados Unidos do que ver, afinal, as eleições
sendo decididas num julgamento
daqueles de filme hollywoodiano.
Mas o que me parece interessante, para resumir, é que o caso
mostra a riqueza e a ambiguidade do próprio conceito de democracia. Não só predomínio da
vontade popular, mas também
estabilidade das regras políticas,
autonomia local, capacidade de
recurso jurídico dos grupos atingidos em seus direitos. Que estes
quatro aspectos entrem em conflito na eleição americana é, sem
dúvida, curioso, mas nada ridículo.
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