São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2000

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MARCELO COELHO
As eleições americanas e o deboche do mordomo

Estamos nos divertindo muito com a confusão nas eleições americanas. Correm piadinhas, como a de que a OEA deveria nomear uma comissão para garantir a lisura do pleito, com Fujimori dirigindo os trabalhos.
Dá bastante prazer, é claro, quando um país que dita regras para o resto do mundo se atrapalha com as próprias. Considerando-se defensores internacionais da democracia -e de outros valores universais, como o livre-comércio, as patentes farmacêuticas, o McDonald's e os antigos seriados de Lucille Ball-, os Estados Unidos se vêem numa situação constrangedora.
Têm de admitir pelo menos um "exotismo", uma "particularidade cultural", um hábito irracional de sua "etnia": a sobrevivência desse anacrônico colégio eleitoral, que pode preferir Bush, quando Gore teve mais votos.
E aqui, no Brasil, observamos com certo deboche que nossa democracia seria "mais adiantada" que a norte-americana, já que temos voto eletrônico em 100% das urnas.
Há algo de servil nessa excitação humorística; é o mordomo assistindo com superioridade momentânea e discreta euforia a crise conjugal na casa chique, os papelões do doutor, as baixarias da madame.
Não tenho nenhuma simpatia pelos Estados Unidos, mas o imbróglio desta eleição parece-me bem pouco ridículo. Não que seja grave, tampouco. Uma das melhores coisas do episódio é justamente não haver nenhuma "crise" mais séria à vista, em meio ao impasse eleitoral. Só isso já aumenta meu respeito pelas instituições americanas.
O mais sugestivo no caso, entretanto, talvez diga respeito ao próprio conceito que temos de democracia. Vou verificando, à medida que prossegue o debate em torno das urnas de Palm Beach, que "democracia" não é uma palavra tão simples assim.
Podemos entendê-la -e é o mais correto- como sendo simplesmente o princípio do respeito à vontade popular. Nesse caso, tudo fica claro: a democracia americana é falha, pois se Gore teve mais votos, deveria ser o presidente; o colégio eleitoral tem de ser extinto e ponto final.
Penso, contudo, em outros fatores que compõem o sistema democrático, e talvez com isso o debate se complique. Sem dúvida, é também um fator importante a estabilidade institucional; o fato de não se mudarem as regras a cada eleição conta bastante para considerarmos se um país é democrático ou não. O fato de que seja dificílimo alterar a Constituição americana certamente determinou a sobrevivência desse extravagante colégio eleitoral; mas é também decisivo para que as disputas de poder se dêem segundo regras sólidas e conhecidas.
Apesar das irregularidades que se noticiam nas eleições da Flórida, daquela cédula eleitoral maluca, cheia de furinhos, até nisso há um aspecto sério a considerar. Claro que podemos preferir nossa urna eletrônica, válida em todos os lugares do país. Mas também faz parte do conceito de democracia a idéia de autogoverno, de poder local; que cada Estado, município, condado ou seja lá que nome tenha, possa dispor de grande autonomia decisória face ao sistema federal, há nisso um componente democrático importante, que conhecemos muito pouco.
Observo de passagem que o famoso desinteresse dos americanos pelas eleições presidenciais -só metade dos eleitores votam de fato- também costuma ser objeto de interpretações provavelmente um tanto parciais. Se o desinteresse é preocupante, no que revela de indiferença e despolitização, podemos pelo menos perguntar se não corresponde, por outro lado, à preponderância de formas locais de participação e decisão política.
Surge, de qualquer modo, uma grande confusão. É possível que muitos eleitores tenham errado seu voto porque a cédula estava malfeita. De forma tipicamente americana, já correm ações nos tribunais exigindo que o pleito seja anulado e outras querendo anular essa exigência; nada garante que num lugarejo qualquer de Wisconsin ou Omaha os republicanos não possam recuperar o que ameaçam perder em Palm Beach. Não sei; minhas informações sobre o assunto são precárias.
Pode-se ver aqui mais um aspecto importante da democracia americana: o fato de que há sempre alguém reclamando seus direitos. Se nos acostumamos a dizer que tudo no Brasil termina em pizza, lá, tudo, até um escorregão, termina nos tribunais. Com resultados muitas vezes ridículos e absurdos, certamente. Nada seria mais típico dos Estados Unidos do que ver, afinal, as eleições sendo decididas num julgamento daqueles de filme hollywoodiano.
Mas o que me parece interessante, para resumir, é que o caso mostra a riqueza e a ambiguidade do próprio conceito de democracia. Não só predomínio da vontade popular, mas também estabilidade das regras políticas, autonomia local, capacidade de recurso jurídico dos grupos atingidos em seus direitos. Que estes quatro aspectos entrem em conflito na eleição americana é, sem dúvida, curioso, mas nada ridículo.



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