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CINEMA/ESTRÉIAS
"ÁGUA QUENTE..."
Shohei Imamura nada contra a corrente, alheio ao momento
Fábula estranha e luminosa não deixa lugar à indiferença
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Viver é muito difícil, nos filmes de Shohei Imamura. A
vida não é algo dado de que podemos ou devemos desfrutar, mas
algo por que se luta sem cessar,
dolorosamente.
Era assim em "A Enguia"
(1997), o último de seus filmes a
passar por aqui (ali, um homem
rompia todo o contato com o
mundo após matar a mulher que
o traía). É assim em "Água Quente sob uma Ponte Vermelha".
Como em "A Enguia", existe
aqui a sombra da misoginia: além
de estar sem emprego, Yosuke é
atormentado em tempo integral
pela quase ex-mulher, cheia de
críticas à sua maneira de ser e exigências pecuniárias.
À beira da morte, um velho filósofo revela a Yosuke um segredo:
a existência de uma ponte vermelha onde existiria um tesouro.
Yosuke se dirige ao local, mas
não encontra nenhum tesouro.
Encontra, em compensação, uma
estranha mulher, Saeko, que tem
a característica particularíssima
de reter água em seu corpo e expeli-la em grandes quantidades
durante a relação sexual.
Ela precisa quase desesperadamente fazer amor para expelir a
água de maneira "saudável", em
jatos. Yosuke vai ajudá-la. Estamos aqui diante de uma espécie
de parábola que começa com a
alusão do filósofo sobre o tesouro.
Yosuke vai à ponte atrás do dinheiro, mas o que encontra não é
isso. É, antes, a constatação de que
formulava um falso problema e,
talvez, propunha a si mesmo um
modo de vida inadequado.
A idéia de "modo de vida inadequado", aliás, perpassa a obra
desse cineasta fora de tempo. Pois
em alguns de seus primeiros filmes ele já criticava com ênfase
(para dizer o mínimo) a permeabilidade dos japoneses à influência ocidental -que o pós-guerra
consagrou- e se arrogava o direito de não aceitar os costumes
impostos do exterior.
Como definir isso politicamente? Nos anos 60, Imamura seria,
talvez, um anarquista. Anarquista
de direita. Mas agora, na virada
do século, no tempo do "pensamento único", o que seria?
Existe em "Água Quente" uma
clara postulação contra o capitalismo desvairado de nossos dias,
cuja crise já chegou a toda ao outrora inexpugnável território japonês. Daí a alusão inicial aos
problemas de Yosuke.
A solução desses problemas, no
entanto, não remete a uma discussão das sociedades contemporâneas ou algo assim, mas a um
território que diz respeito, antes
de tudo, ao corpo. Ao corpo de
Saeko, mais especificamente, corpo de pura libido.
Saeko não faz parte de nosso
mundo, pois a única necessidade
física que o rege é de natureza sexual. O dinheiro -essa outra força decisiva- não existe em seu
horizonte de premências.
O que pensar disso? Trata-se de
um ideário inconformista, evidentemente. Mas como situá-lo?
É um inconformismo progressista ou regressivo? Difícil dizer, a
começar pelo fato de que esse tipo
de atitude está completamente fora de moda.
Esse aspecto, em todo caso, ajuda-nos a nos situar diante deste
filme estranho e luminoso: Imamura continua um cineasta que
nada contra a corrente, indiferente aos pensamentos do momento.
Qualquer outro menos talentoso
talvez caísse no ridículo ao contar
uma história tão estranha quanto
essa. Imamura corre o risco, estica a corda até o último grau, mas à
fábula que nos propõe não conseguimos permanecer indiferentes.
Água Quente sob uma Ponte
Vermelha
De l'Eau Tiéde sous un Pont Rouge
Direção: Shohei Imamura
Produção: Japão/França, 2001
Com: Koji Yakusho e Misa Shimizu
Quando: a partir de hoje nos cines
Cineclube DirecTV e Unibanco Arteplex
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