São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"ÁGUA QUENTE..."

Shohei Imamura nada contra a corrente, alheio ao momento

Fábula estranha e luminosa não deixa lugar à indiferença

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Viver é muito difícil, nos filmes de Shohei Imamura. A vida não é algo dado de que podemos ou devemos desfrutar, mas algo por que se luta sem cessar, dolorosamente.
Era assim em "A Enguia" (1997), o último de seus filmes a passar por aqui (ali, um homem rompia todo o contato com o mundo após matar a mulher que o traía). É assim em "Água Quente sob uma Ponte Vermelha".
Como em "A Enguia", existe aqui a sombra da misoginia: além de estar sem emprego, Yosuke é atormentado em tempo integral pela quase ex-mulher, cheia de críticas à sua maneira de ser e exigências pecuniárias.
À beira da morte, um velho filósofo revela a Yosuke um segredo: a existência de uma ponte vermelha onde existiria um tesouro.
Yosuke se dirige ao local, mas não encontra nenhum tesouro. Encontra, em compensação, uma estranha mulher, Saeko, que tem a característica particularíssima de reter água em seu corpo e expeli-la em grandes quantidades durante a relação sexual.
Ela precisa quase desesperadamente fazer amor para expelir a água de maneira "saudável", em jatos. Yosuke vai ajudá-la. Estamos aqui diante de uma espécie de parábola que começa com a alusão do filósofo sobre o tesouro.
Yosuke vai à ponte atrás do dinheiro, mas o que encontra não é isso. É, antes, a constatação de que formulava um falso problema e, talvez, propunha a si mesmo um modo de vida inadequado.
A idéia de "modo de vida inadequado", aliás, perpassa a obra desse cineasta fora de tempo. Pois em alguns de seus primeiros filmes ele já criticava com ênfase (para dizer o mínimo) a permeabilidade dos japoneses à influência ocidental -que o pós-guerra consagrou- e se arrogava o direito de não aceitar os costumes impostos do exterior.
Como definir isso politicamente? Nos anos 60, Imamura seria, talvez, um anarquista. Anarquista de direita. Mas agora, na virada do século, no tempo do "pensamento único", o que seria?
Existe em "Água Quente" uma clara postulação contra o capitalismo desvairado de nossos dias, cuja crise já chegou a toda ao outrora inexpugnável território japonês. Daí a alusão inicial aos problemas de Yosuke.
A solução desses problemas, no entanto, não remete a uma discussão das sociedades contemporâneas ou algo assim, mas a um território que diz respeito, antes de tudo, ao corpo. Ao corpo de Saeko, mais especificamente, corpo de pura libido.
Saeko não faz parte de nosso mundo, pois a única necessidade física que o rege é de natureza sexual. O dinheiro -essa outra força decisiva- não existe em seu horizonte de premências.
O que pensar disso? Trata-se de um ideário inconformista, evidentemente. Mas como situá-lo? É um inconformismo progressista ou regressivo? Difícil dizer, a começar pelo fato de que esse tipo de atitude está completamente fora de moda.
Esse aspecto, em todo caso, ajuda-nos a nos situar diante deste filme estranho e luminoso: Imamura continua um cineasta que nada contra a corrente, indiferente aos pensamentos do momento. Qualquer outro menos talentoso talvez caísse no ridículo ao contar uma história tão estranha quanto essa. Imamura corre o risco, estica a corda até o último grau, mas à fábula que nos propõe não conseguimos permanecer indiferentes.

Água Quente sob uma Ponte Vermelha
De l'Eau Tiéde sous un Pont Rouge


    
Direção: Shohei Imamura
Produção: Japão/França, 2001
Com: Koji Yakusho e Misa Shimizu
Quando: a partir de hoje nos cines Cineclube DirecTV e Unibanco Arteplex




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