São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Aula de sapiência com o menino e o velocípede

Jornais e revistas publicaram com destaque a foto de Alain Touraine, sociólogo e entendido em coisas brasileiras, cochilando durante a cerimônia em que recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Cândido Mendes, aqui no Rio. Maldade dos editores ou a decantada obrigação de bem informar o público? Honestamente, não sei.
Sei que é uma crueldade involuntária das entidades que costumam organizar congressos e eventos trazendo personalidades para abrilhantar a festa. Em geral, esses ilustres visitantes fazem longa viagem para chegar ao local programado e atravessam a noite espremidos nos aviões, com problemas adicionais de fuso horário.
Chegam de madrugada, são recebidos com tapetes vermelhos, dão entrevistas no aeroporto, mal dispõem de tempo para dar um pulo no hotel, abrir as malas, tomar um banho e mudar de roupa. Logo são convocados para o almoço, que se arrasta pela tarde, pois os promotores do evento fazem questão de não deixar o convidado sozinho. Escolhem o melhor restaurante, que geralmente fica distante do hotel e do local da cerimônia.
Tresnoitado, sem fome, louco para dar um cochilo, o sujeito enfrenta uma mesa de 15 a 20 pessoas, todas interessadas em tirar uma casquinha, acrescentando à própria biografia um parágrafo: "Almoçava frequentemente com Fulano". Chegam atrasadas, o convidado olha o relógio, enquanto recusa os tira-gostos que lhe são oferecidos e louvados como peças raras da culinária local.
Finalmente chegam todos e aí começa a batalha dos pratos, cada conviva escolhe o seu, bife bem-passado ou malpassado, com ou sem cebola, arroz assim e assado, com brócolis ou sem brócolis, o maître toma nota de tudo, fazendo um esforço que lhe custa suor e agonia para memorizar quem está pedindo o quê.
Duas horas depois, o convidado continua olhando o relógio, procurando não demonstrar cansaço e respondendo a perguntas gerais, que vão da social-democracia falida em tais países até o programa de combate à Aids em outros.
Chegam finalmente os pratos, o maître arma uma bruta confusão, quem pediu filé de frango recebe picanha ao ponto e quem espera por um linguado acaba se conformando com um espaguete à matriciana. Tudo bem, vamos comer depressa, o auditório, a não sei quantos quilômetros daquele restaurante incrementado, já deve estar cheio, ansioso pela aula de sapiência do convidado que esfarinhou seu prato, sujando-o apenas, sem vontade de enfrentar os temperos que lhe foram aconselhados como especialidades da região.
Finalmente, levantam-se todos, alguns beberam demais e falam alto, outros disputam a honra de levar o convidado até o auditório. A comitiva pega um engarrafamento monstruoso no túnel Dois Irmãos e, com duas horas de atraso, conseguem chegar ao local do evento, que realmente está lotado e cansado da espera.
O encarregado do cerimonial convoca as presenças mais importantes para formar a mesa, declinando títulos e méritos de cada uma. O convidado recebe aplausos, cumprimenta à direita e à esquerda pessoas que já cumprimentou desde que chegou ao aeroporto. Pensa que a cerimônia vai começar e desaba na cadeira que lhe é reservada ao centro da mesa.
Mas senta-se por pouco tempo, pois começam a cantar o Hino Nacional e ele tem de se levantar e aturar o hino, que é quilométrico. Desobrigado de cantar, pois não conhece a letra, o convidado tem de compor uma cara austera e compenetrada. Quando acha que o hino acabou, desaba novamente na cadeira, mas logo se levanta, pois o hino tem duas partes e ele se sentou antes da hora.
Palmas. O presidente da mesa declara aberta a sessão e dá a palavra ao orador que fará a saudação ao convidado. Depois de citar todas as autoridades presentes e ausentes, pois sempre há pessoas que ali estão representando outras, o orador começa a historiar os feitos do convidado desde criancinha. O convidado não entende a língua local, mas esforça-se para demonstrar interesse pelo que está sendo dito a seu respeito.
De repente, o pensamento dele derrapa -na afobação da viagem, esqueceu-se de trazer o remédio contra a taxa de colesterol que vai alta. E do colesterol lembra que deverá marcar nova consulta ao médico, tão logo regresse à sua pátria. E da pátria vem-lhe a imagem de uma praia deserta onde passou férias recentemente, as imagens se confundem, as pálpebras pesam, depois é a cabeça que pesa, a lei da gravidade atua nele apesar da gravidade das questões que o orador invoca para acentuar a importância da aula de sapiência que ele deverá dar.
A voz do orador vai ficando cada vez mais distante, ele agora está num velocípede, vestido com uma roupinha de marinheiro, o pai apresenta uma mulher e diz: "Esta será a sua segunda mãe, meu filho". O menino se atrapalha, cai do velocípede -ele tem um leve tremor, desperta, está com a cara quase em cima da mesa.
Custa-lhe compreender onde está e o que ali está fazendo. Ouve palmas. É hora de começar a aula de sapiência. Para ganhar tempo, puxa um pigarro inexistente e diz as duas únicas palavras que aprendeu em português: "Muito obrigado!".


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