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CARLOS HEITOR CONY
Aula de sapiência com o menino e o velocípede
Jornais e revistas publicaram com destaque a foto de
Alain Touraine, sociólogo e entendido em coisas brasileiras, cochilando durante a cerimônia em
que recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Cândido Mendes, aqui no Rio. Maldade dos editores ou a decantada
obrigação de bem informar o público? Honestamente, não sei.
Sei que é uma crueldade involuntária das entidades que costumam organizar congressos e
eventos trazendo personalidades
para abrilhantar a festa. Em geral, esses ilustres visitantes fazem
longa viagem para chegar ao local programado e atravessam a
noite espremidos nos aviões, com
problemas adicionais de fuso horário.
Chegam de madrugada, são recebidos com tapetes vermelhos,
dão entrevistas no aeroporto, mal
dispõem de tempo para dar um
pulo no hotel, abrir as malas, tomar um banho e mudar de roupa.
Logo são convocados para o almoço, que se arrasta pela tarde,
pois os promotores do evento fazem questão de não deixar o convidado sozinho. Escolhem o melhor restaurante, que geralmente
fica distante do hotel e do local da
cerimônia.
Tresnoitado, sem fome, louco
para dar um cochilo, o sujeito enfrenta uma mesa de 15 a 20 pessoas, todas interessadas em tirar
uma casquinha, acrescentando à
própria biografia um parágrafo:
"Almoçava frequentemente com
Fulano". Chegam atrasadas, o
convidado olha o relógio, enquanto recusa os tira-gostos que
lhe são oferecidos e louvados como peças raras da culinária local.
Finalmente chegam todos e aí
começa a batalha dos pratos, cada conviva escolhe o seu, bife
bem-passado ou malpassado,
com ou sem cebola, arroz assim e
assado, com brócolis ou sem brócolis, o maître toma nota de tudo,
fazendo um esforço que lhe custa
suor e agonia para memorizar
quem está pedindo o quê.
Duas horas depois, o convidado
continua olhando o relógio, procurando não demonstrar cansaço
e respondendo a perguntas gerais,
que vão da social-democracia falida em tais países até o programa
de combate à Aids em outros.
Chegam finalmente os pratos, o
maître arma uma bruta confusão, quem pediu filé de frango recebe picanha ao ponto e quem espera por um linguado acaba se
conformando com um espaguete
à matriciana. Tudo bem, vamos
comer depressa, o auditório, a
não sei quantos quilômetros daquele restaurante incrementado,
já deve estar cheio, ansioso pela
aula de sapiência do convidado
que esfarinhou seu prato, sujando-o apenas, sem vontade de enfrentar os temperos que lhe foram
aconselhados como especialidades da região.
Finalmente, levantam-se todos,
alguns beberam demais e falam
alto, outros disputam a honra de
levar o convidado até o auditório.
A comitiva pega um engarrafamento monstruoso no túnel Dois
Irmãos e, com duas horas de atraso, conseguem chegar ao local do
evento, que realmente está lotado
e cansado da espera.
O encarregado do cerimonial
convoca as presenças mais importantes para formar a mesa, declinando títulos e méritos de cada
uma. O convidado recebe aplausos, cumprimenta à direita e à esquerda pessoas que já cumprimentou desde que chegou ao aeroporto. Pensa que a cerimônia
vai começar e desaba na cadeira
que lhe é reservada ao centro da
mesa.
Mas senta-se por pouco tempo,
pois começam a cantar o Hino
Nacional e ele tem de se levantar e
aturar o hino, que é quilométrico.
Desobrigado de cantar, pois não
conhece a letra, o convidado tem
de compor uma cara austera e
compenetrada. Quando acha que
o hino acabou, desaba novamente na cadeira, mas logo se levanta,
pois o hino tem duas partes e ele
se sentou antes da hora.
Palmas. O presidente da mesa
declara aberta a sessão e dá a palavra ao orador que fará a saudação ao convidado. Depois de citar
todas as autoridades presentes e
ausentes, pois sempre há pessoas
que ali estão representando outras, o orador começa a historiar
os feitos do convidado desde
criancinha. O convidado não entende a língua local, mas esforça-se para demonstrar interesse pelo
que está sendo dito a seu respeito.
De repente, o pensamento dele
derrapa -na afobação da viagem, esqueceu-se de trazer o remédio contra a taxa de colesterol
que vai alta. E do colesterol lembra que deverá marcar nova consulta ao médico, tão logo regresse
à sua pátria. E da pátria vem-lhe
a imagem de uma praia deserta
onde passou férias recentemente,
as imagens se confundem, as pálpebras pesam, depois é a cabeça
que pesa, a lei da gravidade atua
nele apesar da gravidade das
questões que o orador invoca para acentuar a importância da aula de sapiência que ele deverá dar.
A voz do orador vai ficando cada vez mais distante, ele agora está num velocípede, vestido com
uma roupinha de marinheiro, o
pai apresenta uma mulher e diz:
"Esta será a sua segunda mãe,
meu filho". O menino se atrapalha, cai do velocípede -ele tem
um leve tremor, desperta, está
com a cara quase em cima da mesa.
Custa-lhe compreender onde está e o que ali está fazendo. Ouve
palmas. É hora de começar a aula
de sapiência. Para ganhar tempo,
puxa um pigarro inexistente e diz
as duas únicas palavras que
aprendeu em português: "Muito
obrigado!".
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