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LIVRO/LANÇAMENTO
Desconfiança e busca pela autenticidade permeiam antologia "Grande Sonho do Céu", com 18 contos
Em cenas, Sam Shepard idealiza o oeste e o real
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
À primeira vista, a literatura
de Sam Shepard é resultado
de uma idealização do oeste que
tem por base a oposição entre o
masculino e o feminino, a natureza e a cultura, o autêntico e o falso.
Paira sobre os seus textos uma
desconfiança em relação aos artifícios da cultura, a idéia de que a autenticidade está num contato mais
direto com a natureza e que um
texto é tão "mais verdadeiro"
quanto mais for "vivido". Mas
Shepard não é um autor ingênuo.
Sua peça "True West" deixava claro, já em 1981, que mesmo essa
idealização não está de todo desprovida de ironia.
Na coletânea "Grande Sonho do
Céu", estão presentes alguns dos
ingredientes da melhor tradição
moderna do conto americano,
herdeira de Tchekov e Hemingway: o texto substantivo e seco; a
idéia de que basta apresentar os fatos, observá-los sem julgá-los, para alcançar o maior efeito; um certo minimalismo e a romantização
do "homem natural", em contato
com a natureza selvagem.
Ainda assim, as histórias de Shepard em geral não dão o salto que
garantiu a Raymond Carver e a
John Cheever, para dar dois exemplos extraordinários, o lugar de
grandes expoentes do conto moderno americano. É como se Shepard interrompesse suas narrativas antes do salto.
Num ensaio bastante citado, Ricardo Piglia define o conto como
uma narrativa que "sempre conta
duas histórias", uma visível e outra secreta. "O conto se constrói
para fazer aparecer artificialmente
algo que estava oculto." No caso
de Hemingway, citado por Piglia,
a história secreta é tão cifrada, tão
elíptica, que o conto acaba dando
a impressão de ser apenas uma
descrição trivial. É aí que Shepard
vai beber, nem sempre alcançando o mesmo sucesso da fonte.
Muitos dos 18 textos reunidos
estão mais para crônicas do que
para contos. Às vezes, são apenas
cenas, situações imaginadas pelo
escritor, e que terminam nelas
mesmas, sem que se desenvolva
um conflito interior entre uma
história aparente e outra oculta.
São como "flashes" de teatro ou cinema. Shepard é antes de mais nada um dramaturgo. Isso não desmerece os melhores entre esses
textos, como o que dá título à coletânea, em que dois velhos viúvos
dividem a mesma casa e se apaixonam pela mesma garçonete, ou "O
Olho que Pisca", em que uma moça levando as cinzas da mãe, de
carro, pelo oeste dos EUA, depara
com um gavião ferido na estrada.
Todos eles parecem permeados
por uma associação romântica entre natureza e autenticidade. A natureza parece dar a medida do
real. O homem viril tem no cavalo
xucro a sua metáfora: o homem de
sentimentos fortes e profundos,
mas incapaz de expressá-los, razão de tantos desencontros amorosos. O homem que é capaz de
apontar uma espingarda para
uma mulher, simplesmente por
senti-la dissimulada e urbana, para desmascará-la, para obrigá-la a
reconhecer a farsa do seu jogo, para obrigá-la a confessar que mentiu quando disse que era do oeste.
É, por fim, no último texto do livro que Shepard dá a entender que
não é tão simplista assim. No curtíssimo "Todas as Árvores Estão
Nuas", um homem encontra a
mulher diante da televisão, assistindo a "O Terceiro Homem". A
mulher tem os cabelos pintados.
No filme, o vento e as folhas das
árvores são de mentira. E o homem diz: "De repente, estou dentro do filme sem saber como fui
seduzido. (...) Acredito que as folhas que caem sejam verdadeiras.
(...) Sinto-me feliz por estar aqui,
agora, com a mulher que amo, tocando-lhe os cabelos louros pintados. (...) Quanto tempo faz que eu
a beijei pela primeira vez e quem é
que eu estava fingindo ser?". A
idealização da autenticidade cai
por terra. Afinal, antes de ser um
homem do oeste, Shepard é um
homem de teatro.
Grande Sonho do Céu
Autor: Sam Shepard
Editora: Arx
Quanto: R$ 28 (176 págs.)
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