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São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

Desconfiança e busca pela autenticidade permeiam antologia "Grande Sonho do Céu", com 18 contos

Em cenas, Sam Shepard idealiza o oeste e o real

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

À primeira vista, a literatura de Sam Shepard é resultado de uma idealização do oeste que tem por base a oposição entre o masculino e o feminino, a natureza e a cultura, o autêntico e o falso. Paira sobre os seus textos uma desconfiança em relação aos artifícios da cultura, a idéia de que a autenticidade está num contato mais direto com a natureza e que um texto é tão "mais verdadeiro" quanto mais for "vivido". Mas Shepard não é um autor ingênuo. Sua peça "True West" deixava claro, já em 1981, que mesmo essa idealização não está de todo desprovida de ironia.
Na coletânea "Grande Sonho do Céu", estão presentes alguns dos ingredientes da melhor tradição moderna do conto americano, herdeira de Tchekov e Hemingway: o texto substantivo e seco; a idéia de que basta apresentar os fatos, observá-los sem julgá-los, para alcançar o maior efeito; um certo minimalismo e a romantização do "homem natural", em contato com a natureza selvagem.
Ainda assim, as histórias de Shepard em geral não dão o salto que garantiu a Raymond Carver e a John Cheever, para dar dois exemplos extraordinários, o lugar de grandes expoentes do conto moderno americano. É como se Shepard interrompesse suas narrativas antes do salto.
Num ensaio bastante citado, Ricardo Piglia define o conto como uma narrativa que "sempre conta duas histórias", uma visível e outra secreta. "O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto." No caso de Hemingway, citado por Piglia, a história secreta é tão cifrada, tão elíptica, que o conto acaba dando a impressão de ser apenas uma descrição trivial. É aí que Shepard vai beber, nem sempre alcançando o mesmo sucesso da fonte.
Muitos dos 18 textos reunidos estão mais para crônicas do que para contos. Às vezes, são apenas cenas, situações imaginadas pelo escritor, e que terminam nelas mesmas, sem que se desenvolva um conflito interior entre uma história aparente e outra oculta. São como "flashes" de teatro ou cinema. Shepard é antes de mais nada um dramaturgo. Isso não desmerece os melhores entre esses textos, como o que dá título à coletânea, em que dois velhos viúvos dividem a mesma casa e se apaixonam pela mesma garçonete, ou "O Olho que Pisca", em que uma moça levando as cinzas da mãe, de carro, pelo oeste dos EUA, depara com um gavião ferido na estrada.
Todos eles parecem permeados por uma associação romântica entre natureza e autenticidade. A natureza parece dar a medida do real. O homem viril tem no cavalo xucro a sua metáfora: o homem de sentimentos fortes e profundos, mas incapaz de expressá-los, razão de tantos desencontros amorosos. O homem que é capaz de apontar uma espingarda para uma mulher, simplesmente por senti-la dissimulada e urbana, para desmascará-la, para obrigá-la a reconhecer a farsa do seu jogo, para obrigá-la a confessar que mentiu quando disse que era do oeste.
É, por fim, no último texto do livro que Shepard dá a entender que não é tão simplista assim. No curtíssimo "Todas as Árvores Estão Nuas", um homem encontra a mulher diante da televisão, assistindo a "O Terceiro Homem". A mulher tem os cabelos pintados. No filme, o vento e as folhas das árvores são de mentira. E o homem diz: "De repente, estou dentro do filme sem saber como fui seduzido. (...) Acredito que as folhas que caem sejam verdadeiras. (...) Sinto-me feliz por estar aqui, agora, com a mulher que amo, tocando-lhe os cabelos louros pintados. (...) Quanto tempo faz que eu a beijei pela primeira vez e quem é que eu estava fingindo ser?". A idealização da autenticidade cai por terra. Afinal, antes de ser um homem do oeste, Shepard é um homem de teatro.


Grande Sonho do Céu
   
Autor: Sam Shepard Editora: Arx Quanto: R$ 28 (176 págs.)



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