São Paulo, Quarta-feira, 15 de Dezembro de 1999


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LITERATURA
A Folha participou do encontro histórico entre os autores Raduan Nassar e Ariano Suassuna
Quando a terra roxa visita a caatinga

MARILENE FELINTO
enviada especial a Recife


Num encontro histórico para a literatura brasileira, conheceram-se pessoalmente na quinta-feira passada, em Recife (PE), os autores Raduan Nassar, 64, e Ariano Suassuna, 72 -foi o dia em que o interior de São Paulo esteve no sertão do Nordeste, em que a terra roxa visitou a caatinga.
A Folha assistiu com exclusividade a essa conversa que, fosse há 50 anos e eu já tivesse nascido, seria comparável a participar de um encontro entre Graciliano Ramos e Guimarães Rosa -guardadas as devidas proporções que a posteridade dá aos grandes escritores. E com a diferença de que Ramos e Rosa seriam ídolos meus, enquanto que Nassar e Suassuna estão mais para amigos ou colegas de profissão, apesar da diferença de idade entre eles e eu, e apesar de isso não diminuir minha admiração e meu respeito.
"Estou me sentindo como quem entra num templo", disse Raduan Nassar ao entrar na casa de Ariano Suassuna, no bairro de Casa Forte, em Recife. É um casarão antigo, de fachada azulejada, pé direito altíssimo, cheio de obras de arte desde o jardim: esculturas, pinturas, gravuras, mosaicos e iluminogravuras de autoria do próprio Ariano, seu filho Dantas, sua mulher Zélia e alguns amigos do escritor.
Raduan admira a obra do professor, escritor e dramaturgo Ariano, autor do consagrado "Auto da Compadecida" (1972). Ariano, por sua vez, considera "Lavoura Arcaica" (1975), obra de Raduan, "um exemplo de que se pode acreditar no Brasil e no povo brasileiro".
Ariano é alto, magro, de ascendência galego-portuguesa, surpreendentemente ágil para sua idade, não fuma, não bebe café, nasceu no sertão da Paraíba, onde até hoje tem uma fazenda em que se dedica à criação de cabras.
Raduan é baixo, atarracado, fuma um Minister atrás do outro e bebe muito café. Nasceu em Pindorama, interior de São Paulo, filho de pais libaneses comerciantes. Também é ligado à terra e à criação de animais. Parou de escrever literatura nos anos 70 para se dedicar à agricultura em sua fazenda, Lagoa do Sino, em SP.
Nos estilos literários eles também são opostos. Raduan só escreveu dois romances curtos (o outro é "Um Copo de Cólera", 1978), de linguagem econômica, concisa e definitiva, o estilo mesmo da desistência. O texto de Ariano, por outro lado, é caudaloso e armorial (ou erudito-popular): seu romance mais importante tem 636 páginas e se chama "Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta -Romance Armorial-Popular Brasileiro" (1971). Suassuna é também dramaturgo, poeta e artista plástico. Sua obra em prosa é sempre completada por poemas e iluminogravuras de sua autoria.
Na sala de um casarão de Recife, num encontro regado a suco de pitanga e muita risada, dois dos maiores autores brasileiros vivos, Raduan Nassar e Ariano Suassuna conheceram-se e reconheceram-se no que têm de parecido: dois homens arcaicos (como eles próprios se definem), que têm forte ligação com a terra e com as coisas que a terra dá.
A literatura passou ao largo da conversa (assistida também por dois familiares e dois amigos de Suassuna), que se concentrou mais na criação de cabras do que na criação de livros, mais em plantações de feijão do que nos processos da escrita. Prova (mais uma) de que a literatura brasileira deste século que se encerra tem seus nomes mais significativos na gente que se formou no interior: na terra roxa de Raduan Nassar, nos cerrados de Guimarães Rosa e no vermelhão das terras de cabras gurguéias, o sertão de Graciliano Ramos e Ariano Suassuna.

Raduan Nassar - Eu estive em Recife há 30 anos. Naquela época eu fui até Manaus e fui descendo, foi quando passei por Recife. E desde então ficou sempre esse projeto de conhecer melhor o Brasil. Em Belém, por exemplo, eu estive agora de novo e me pareceu uma cidade sagrada, sabe, num certo sentido, pela fartura de água, de vegetação, da oferta de alimentos. Eu fui às quatro da manhã para o porto, ver a chegada dos barcos de pescaria, era uma quantidade de peixes que eu fiquei impressionado. E é um absurdo porque o Brasil lá embaixo ignora essas coisas, ignora e não defende essas coisas.
E eu tenho uns amigos também lá em Maceió. Eu fiquei muito impressionado também com Alagoas. Era para ser um Estado padrão, modelo no Brasil, pela potencialidade que ele tem. Eu não sei como é que aquilo não vai para a frente. É uma riqueza de frutas que é uma beleza. Fora o potencial turístico, que é visível.

Ariano Suassuna - Raduan, olhe, antes de mais nada eu quero mostrar aquele quadro que meu filho Dantas pintou, depois que ele assistiu àquele documentário que o Luís Fernando Carvalho fez sobre o Líbano (Carvalho é diretor de filme ainda inédito baseado no romance "Lavoura Arcaica" e esteve no Líbano preparando o filme). Ele é muito amigo do Luís Fernando, como eu sou também. Não foi pintado para você ver não. Ele já existia. E ele, depois que viu o documentário, acrescentou as duas lagartixas ali e o nome. Logo depois que a gente viu o documentário, que é uma beleza.

Nassar - É, é sim.

Suassuna - Aliás, eu tinha a impressão de que você era mais velho. Porque você aparece no filme naquela cena num curral. Não é?


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