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LITERATURA
A Folha participou do encontro histórico entre os autores Raduan Nassar e Ariano Suassuna
Quando a terra roxa visita a caatinga
MARILENE FELINTO
enviada especial a Recife
Num encontro histórico para a
literatura brasileira, conheceram-se pessoalmente na quinta-feira
passada, em Recife (PE), os autores Raduan Nassar, 64, e Ariano
Suassuna, 72 -foi o dia em que o
interior de São Paulo esteve no
sertão do Nordeste, em que a terra roxa visitou a caatinga.
A Folha assistiu com exclusividade a essa conversa que, fosse há
50 anos e eu já tivesse nascido, seria comparável a participar de um
encontro entre Graciliano Ramos
e Guimarães Rosa -guardadas
as devidas proporções que a posteridade dá aos grandes escritores. E com a diferença de que Ramos e Rosa seriam ídolos meus,
enquanto que Nassar e Suassuna
estão mais para amigos ou colegas de profissão, apesar da diferença de idade entre eles e eu, e
apesar de isso não diminuir minha admiração e meu respeito.
"Estou me sentindo como
quem entra num templo", disse
Raduan Nassar ao entrar na casa
de Ariano Suassuna, no bairro de
Casa Forte, em Recife. É um casarão antigo, de fachada azulejada,
pé direito altíssimo, cheio de
obras de arte desde o jardim: esculturas, pinturas, gravuras, mosaicos e iluminogravuras de autoria do próprio Ariano, seu filho
Dantas, sua mulher Zélia e alguns
amigos do escritor.
Raduan admira a obra do professor, escritor e dramaturgo
Ariano, autor do consagrado
"Auto da Compadecida" (1972).
Ariano, por sua vez, considera
"Lavoura Arcaica" (1975), obra de
Raduan, "um exemplo de que se
pode acreditar no Brasil e no povo
brasileiro".
Ariano é alto, magro, de ascendência galego-portuguesa, surpreendentemente ágil para sua
idade, não fuma, não bebe café,
nasceu no sertão da Paraíba, onde
até hoje tem uma fazenda em que
se dedica à criação de cabras.
Raduan é baixo, atarracado, fuma um Minister atrás do outro e
bebe muito café. Nasceu em Pindorama, interior de São Paulo, filho de pais libaneses comerciantes. Também é ligado à terra e à
criação de animais. Parou de escrever literatura nos anos 70 para
se dedicar à agricultura em sua fazenda, Lagoa do Sino, em SP.
Nos estilos literários eles também são opostos. Raduan só escreveu dois romances curtos (o
outro é "Um Copo de Cólera",
1978), de linguagem econômica,
concisa e definitiva, o estilo mesmo da desistência. O texto de
Ariano, por outro lado, é caudaloso e armorial (ou erudito-popular): seu romance mais importante tem 636 páginas e se chama
"Romance d'A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta -Romance Armorial-Popular
Brasileiro" (1971). Suassuna é
também dramaturgo, poeta e artista plástico. Sua obra em prosa é
sempre completada por poemas e
iluminogravuras de sua autoria.
Na sala de um casarão de Recife,
num encontro regado a suco de
pitanga e muita risada, dois dos
maiores autores brasileiros vivos,
Raduan Nassar e Ariano Suassuna conheceram-se e reconheceram-se no que têm de parecido:
dois homens arcaicos (como eles
próprios se definem), que têm
forte ligação com a terra e com as
coisas que a terra dá.
A literatura passou ao largo da
conversa (assistida também por
dois familiares e dois amigos de
Suassuna), que se concentrou
mais na criação de cabras do que
na criação de livros, mais em
plantações de feijão do que nos
processos da escrita. Prova (mais
uma) de que a literatura brasileira
deste século que se encerra tem
seus nomes mais significativos na
gente que se formou no interior:
na terra roxa de Raduan Nassar,
nos cerrados de Guimarães Rosa
e no vermelhão das terras de cabras gurguéias, o sertão de Graciliano Ramos e Ariano Suassuna.
Raduan Nassar - Eu estive em
Recife há 30 anos. Naquela época
eu fui até Manaus e fui descendo,
foi quando passei por Recife. E
desde então ficou sempre esse
projeto de conhecer melhor o
Brasil. Em Belém, por exemplo,
eu estive agora de novo e me pareceu uma cidade sagrada, sabe,
num certo sentido, pela fartura de
água, de vegetação, da oferta de
alimentos. Eu fui às quatro da manhã para o porto, ver a chegada
dos barcos de pescaria, era uma
quantidade de peixes que eu fiquei impressionado. E é um absurdo porque o Brasil lá embaixo
ignora essas coisas, ignora e não
defende essas coisas.
E eu tenho uns amigos também
lá em Maceió. Eu fiquei muito impressionado também com Alagoas. Era para ser um Estado padrão, modelo no Brasil, pela potencialidade que ele tem. Eu não
sei como é que aquilo não vai para
a frente. É uma riqueza de frutas
que é uma beleza. Fora o potencial turístico, que é visível.
Ariano Suassuna - Raduan,
olhe, antes de mais nada eu quero
mostrar aquele quadro que meu
filho Dantas pintou, depois que
ele assistiu àquele documentário
que o Luís Fernando Carvalho fez
sobre o Líbano (Carvalho é diretor de filme ainda inédito baseado
no romance "Lavoura Arcaica" e
esteve no Líbano preparando o
filme). Ele é muito amigo do Luís
Fernando, como eu sou também.
Não foi pintado para você ver
não. Ele já existia. E ele, depois
que viu o documentário, acrescentou as duas lagartixas ali e o
nome. Logo depois que a gente
viu o documentário, que é uma
beleza.
Nassar - É, é sim.
Suassuna - Aliás, eu tinha a impressão de que você era mais velho. Porque você aparece no filme
naquela cena num curral. Não é?
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