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Morre o filósofo Gérard Lebrun, 69, em Paris
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
O filósofo francês Gérard Lebrun, 69, foi encontrado morto na
última sexta-feira, no seu apartamento em Paris, onde morava sozinho. A causa da morte ainda
não foi esclarecida, e o corpo do
filósofo até ontem à noite não havia sido liberado pela polícia técnica francesa, que realiza a autópsia. Não há data para o enterro.
O corpo de Lebrun foi encontrado pelo corpo de bombeiros de
Paris, que arrombou seu apartamento na sexta. Colegas franceses
estranharam a ausência do filósofo numa banca de defesa de tese,
da qual iria participar como arguidor na manhã do mesmo dia.
Telefonaram ao apartamento e,
como ninguém respondia, avisaram a polícia, que foi ao local.
Até ontem, nenhum dos grandes jornais franceses havia noticiado o caso. Intelectuais brasileiros, amigos de Lebrun, entre os
quais José Arthur Giannotti, souberam da morte por colegas franceses. "Recebi um e-mail enviado
no domingo, mas só abri a caixa
postal ontem (terça-feira)", disse
Giannotti, presidente do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento).
A Folha falou ontem à noite por
telefone com Gilles Gaston-Granger, filósofo amigo de Lebrun. Dizendo-se muito abatido, Granger
afirmou que "casos como esse, de
pessoas que morrem sozinhas,
demoram mesmo para ser liberados pelas autoridades francesas".
Granger, que lecionou no Brasil
nas décadas de 50 e 60, escreveu
um necrológio sobre Lebrun que,
segundo ele, deve ser publicado
pelo jornal francês "Le Monde"
nos próximos dias.
Relação interrompida
Lebrun faria 70 anos em fevereiro próximo. Não vinha ao Brasil
desde o final de 96, interrompendo uma relação regular com o
país que manteve por mais de três
décadas. O filósofo cortou vínculos com o Brasil depois que foi
acusado de pedofilia, no final de
96. Na época, Lebrun foi citado
pelo gari desempregado Argenil
Pereira, que, flagrado pela polícia
carioca com fotos em que simulava relações sexuais com duas meninas, de 7 e 9 anos, afirmou que o
filósofo havia lhe encomendado o
material. Lebrun negou as acusações e assumiu publicamente na
época que era homossexual.
Sua prisão preventiva chegou a
ser decretada no Brasil em janeiro
de 97 e, desde então, Lebrun nunca mais voltou ao país. Segundo
amigos, ele não se recuperaria da
mágoa que o episódio lhe provocou. "Ele foi uma das pessoas que
mais contribuíram para a filosofia
no Brasil e acabou sacrificado por
nossa volúpia de destruição", disse Giannotti, referindo-se à repercussão do escândalo.
Influência no Brasil
Gérard Lebrun foi, de todos os
pensadores franceses, o que, de
longe, mais marcou e exerceu influência sobre a filosofia brasileira. Entre 1960 e meados da década
de 90, morou entre o Brasil, sobretudo em São Paulo, e a França.
Costumava lecionar um semestre
na USP e outro em Aix-en-Provence, nos arredores de Paris.
O filósofo chegou ao país pela
primeira vez em novembro de 60,
poucas semanas depois de o filósofo Jean-Paul Sartre, na época
uma das maiores personalidades
filosóficas do mundo, ter deixado
o país, onde permaneceu por quase três meses viajando.
Lebrun permaneceu em São
Paulo de 60 a 66. Foi aqui que preparou e escreveu sua tese de doutorado, "Kant e o Fim da Metafísica", que defenderia na França. O
estudo, um longo ensaio de quase
800 páginas sobre a crítica do juízo kantiana, foi publicado em livro na França, em 1970.
A primeira intervenção intelectual pública de Lebrun no Brasil
foi inusitada: um ensaio escrito
em fins de 62, em que fazia a crítica de "Consciência e Realidade
Nacional", obra em dois volumes
e quase mil páginas de Álvaro
Vieira Pinto, na época um dos
principais expoentes do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que reunia pensadores cariocas em torno de posições nacionalistas de esquerda. Lebrun
mostrava que a obra de Vieira
Pinto era um pastiche disfarçado
do pensamento francês influenciado pelo existencialismo alemão, de índole conservadora.
Sobre sua relação com a Faculdade de Filosofia da USP nos anos
60, localizada na rua Maria Antônia, Lebrun disse uma vez: "Foi o
momento mais feliz da minha vida universitária, da minha vida,
talvez. Eu tenho certeza de que todas as pessoas que conheceram
essa época não podem deixar de
ter saudade da Maria Antônia".
O relato consta do livro "Um
Departamento Francês de Ultramar - Estudos Sobre a Formação
da Cultura Filosófica Uspiana"
(Paz e Terra, 1994), do filósofo
Paulo Eduardo Arantes.
No primeiro capítulo do livro,
Arantes conta a influência que Lebrun exercia sobre a filosofia local: "Era ainda aluno quando
Bento Prado Jr. me passou uma
pasta contendo uma dezena ou
mais de artigos inéditos de Gérard
Lebrun, com uma recomendação
expressa: leia, estude e procure
imitar, pois é assim que se deve
pensar e escrever".
O fascínio que Lebrun despertava nos jovens brasileiros não era
um fenômeno isolado. O filósofo
era amigo de Michel Foucault, expoente da geração de pensadores
franceses pós-estruturalistas, que
dominaria a cena intelectual a
partir de meados dos anos 60.
Foucault esteve no Brasil em 65,
convidado por Lebrun. Apresentou pela primeira seu livro "As
Palavras e as Coisas", que seria
publicado em Paris em 66, em um
curso ministrado na USP.
Hegel na Tunísia
Entre o final dos anos 60 e o início dos 70, Lebrun morou uma
temporada na Tunísia e outra no
Chile. Seu livro mais famoso, "La
Patience du Concept - Essai sur le
Discours Hégélien", publicado na
França em 72 e ainda inédito no
Brasil, foi escrito na Tunísia.
Nele, Lebrun afirmava que a
dialética hegeliana não era mais
do que "uma maneira de falar"
("une façon de parler"). O livro,
saudado como uma bomba intelectual, subvertia mais de 150 anos
de interpretação da obra do filósofo alemão Hegel. Lebrun se
opunha à tese de que existia uma
"filosofia hegeliana" e reduzia o
hegelianismo, para horror dos
marxistas, a uma "revolução discursiva", uma "máquina de linguagem especializada em pulverizar categorias petrificadas", como
escreveu Paulo Arantes.
Liberal e antidogmático
O filósofo voltou ao Brasil em
74. Lecionou na USP e na Unicamp. Assumidamente liberal,
crítico bem-humorado da esquerda e das idéias marxistas, passou a
colaborar no "Jornal da Tarde".
Dessa colaboração nasceu o livro
"Passeios ao Léu" (editora Brasiliense), atualmente esgotado.
"Ele foi, em um palavra, um
pensador anticlerical, um pensador antidogmático, contra os valores e as práticas mais arraigadas
e dissimuladas", diz Scarlett Marton, professora do departamento
de Filosofia da USP, responsável
pela organização do volume da
revista "Discurso", do departamento, dedicada a Lebrun, em 93.
"Ninguém como ele tratava da
filosofia clássica aos contempoorâneos com tanta erudição e desenvoltura", afirma Milton Meira,
também da filosofia da USP.
Lebrun, de fato, criou escola na
universidade. Seus cursos, nos
anos 60, 70 e até 80 estavam entre
os mais disputados, por alunos e
professores. Muito teatrais, suas
aulas eram pontuadas por piadas
sobre os filósofos. Até hoje há vários professores quie o imitam.
Tabagista contumaz, -mais de
dois maços ao dia-, Lebrun fumava Continental sem filtro durante suas aulas. Contar as bitucas
que deixava pelo chão era uma
das diversões de seus discípulos.
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