São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

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MARCELO COELHO

Vazando no vazio


Os famosos vazamentos diplomáticos do WikiLeaks padecem de um tipo de artificialismo completo


O MUNDO todo adorou a confusão criada com o WikiLeaks e torce pela libertação de Julian Assange, acusado de estupro na Suécia.
Simplesmente ninguém acredita que ele possa ter cometido algum crime sexual. A convicção generalizada é de que as provas dessa eventual malfeitoria devem estar escondidas junto com as armas de destruição de massa que deram pretexto à invasão do Iraque.
Culpado ou inocente, não sei. Mas, no mínimo, Julian Assange não é da tribo de Saddam Hussein.
Chega a ser ridículo que os detentores dos maiores arsenais de guerra do mundo saiam por aí advertindo sobre a periculosidade de Julian Assange. Montados em cima de não sei quantos tanques, mísseis e submarinos, avisam dos riscos que o WikiLeaks pode trazer à sobrevivência de pessoas inocentes.
Criou-se uma imagem altamente romântica do fundador do WikiLeaks. Um indivíduo sozinho consegue ser detestado e perseguido pelos governantes mais poderosos do mundo; russos reclamam, americanos vociferam, chineses esperneiam e até os fleugmáticos noruegueses se mobilizam para caçar Assange.
Juntam-se contra o WikiLeaks as forças do Pentágono, do Kremlin e do Mastercard; que mais se poderia desejar?
E nada mais bonito do que ver, de Ottawa a Jacarta, de Helsinki a Santiago, pessoas mobilizadas a favor de um herói instantâneo da comunicação em rede.
É um progresso e tanto, convenhamos, sair da figura ultranacionalista de José Bové, agricultor francês nos primórdios do movimento antiglobalização, para a desse paladino computadorizado, investigativo e sem pátria.
Prestada a devida homenagem, acrescento alguns ingredientes de azedume às celebrações. Não consigo identificar o que de realmente interessante veio à luz no meio dos milhares de segredos diplomáticos vazados pelo site.
Surge a notícia de um vazamento: o premiê italiano Berlusconi gasta energias demais em festas de arromba. Publique-se na primeira página: um esquema mafioso domina o Estado russo. E o Medvedev não passa de um Robin perto do Batman-Putin.
Incrível: os Estados Unidos acham o novo primeiro ministro inglês um bocado "peso leve". Bomba das bombas, a presidente eleita Dilma Rousseff teria planejado assaltos a banco na época em que militava contra a ditadura militar.
Mas já sabíamos de tudo isso pelos jornais. Os famosos vazamentos diplomáticos padecem de um artificialismo completo.
Determinado funcionário americano passa o tempo na embaixada batendo papo com os correspondentes internacionais. Assiste à TV local, assina jornais e revistas. Depois escreve um relatório, "confidencial", é claro.
Junta todos os pedaços de informação com suas impressões pessoais. Pessoais, em termos. Hum, a Dilma é meio durona, mas é competente. Ahn, Berlusconi é um cafona e um tremendo de um farrista. Xi, será que o Medvedev consegue sair da sombra do Putin?
Opiniões repetidas nos comentários da imprensa tornam-se, desse modo, uma espécie de patrimônio comum da trivialidade internacional. Incluídas na mala diplomática, sob o carimbo de "confidencial", serão lidas ou engavetadas pelo burocrata no escalão de cima.
Surge o WikiLeaks, e vaza o que não passava de um condensado do que a imprensa já dizia. O vazamento causa sensação; volta à imprensa, em manchetes seguidas. O círculo se completa, sem que nada de novo tenha aparecido.
Exceto, talvez, a percepção de que os funcionários da embaixada, e seus superiores, têm opiniões não muito diferentes, nem menos banais, do que qualquer pessoa.
A não ser nos casos de uma filmagem real de massacres por soldados americanos no Iraque ou no Afeganistão, o impacto real de tanta papelada secreta não parece existir.
O fenômeno gira num tornado midiático; o que Hillary disse de Vladimir ganha o formato preciso das revistas de celebridades, como se fosse o que Hebe disse de Silvio.
Talvez aí se localize o potencial subversivo de Assange (ele próprio uma celebridade global típica, até nas acusações sexuais que o cercam). Vem demonstrar que os governantes se reduzem a decalques sorridentes num "facebook" exclusivo, trocando suas mensagens e emoticons, enquanto o poder verdadeiro se esconde em algum outro lugar, mais inexpugnável do que o das armas de Saddam.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA: Contardo Calligaris


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