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MÚSICA ERUDITA
Filarmônica de NY mostra "escultura de materiais fluidos"
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Uma vez é pouco. É sempre
pouco, quando se escuta
música contemporânea; e especialmente pouco quando se escuta uma peça como o "Concerto
para Piano e Orquestra" de Witold Lutoslawski (1913-94), espetacularmente bem tocado por Leif
Ove Andsnes, com a Filarmônica
de Nova York regida por Andrew
Davis, sexta-feira passada no
Avery Fisher Hall, em Nova York.
Da perspectiva do século 21, o
século 20 começa a ficar um pouco diferente. Vinte anos atrás,
ninguém duvidava de que a trindade Boulez-Berio-Stockhausen
reinava sobre os tempos, na companhia de arcanjos como Ligeti e
Cage. Hoje não é mais tão fácil nomear quem define musicalmente
o fim-de-século; mas compositores como Schnittke e Lutoslawski
têm de ser considerados.
O "Concerto para Piano e Orquestra" de Lutoslawski foi escrito em 1988, para seu compatriota
polonês Krystian Zimerman. O
último movimento faz uso da
mesma forma "encadeada" que o
compositor empregara em
"Chain 1" (de 1983, para conjunto
de câmara), "Chain 2" (1985, violino e orquestra) e "Chain 3"
(1986, orquestra): materiais contrastantes que se sobrepõem, cada
um começando antes de o outro
terminar. Mas o "Concerto" não é
uma "Chain 4". Suas ambições
vão mais longe ainda; seja pela escala formal -quatro movimentos longos, tocados sem interrupção-, seja pela pressão afetiva,
ele é o único rival possível para o
"Concerto para Piano e Orquestra" de Ligeti, outra obra-prima
inesperada aparecendo no mundo em plena década de 80.
Não foi muito antes que nasceu
o pianista norueguês Leif Ove
Andsnes. O nome é difícil, mas já
se tornou conhecido pelo mundo.
Técnica perfeita, a essa altura, todo pianista tem. Mas nem todos
têm um senso tão criterioso de repertório e tanta clareza de pensamento. Só a audácia de escolher
Lutoslawski já nos faz admirá-lo.
A apresentação de sexta foi um
concerto matinal (às 11h). Mais ou
menos 80% da platéia tinha cerca
de 80 anos de idade, nessa metrópole de idosos animados, escorados em ações e pensões. Tanto
maior a satisfação de ver o entusiasmo do público ao fim.
Virtuosístico, emocionalmente
carregado, alternando cascatas de
semicolcheias com uma cantilena
em acordes, "Concerto" faz jus à
definição do compositor de sua
música, como "escultura feita de
materiais fluidos". Mas a definição só descreve a forma; e o que
comoveu foi o conteúdo: uma arte do desastre e da renovação.
Da perspectiva do século 21, o
20 começa mesmo a ficar diferente. Será possível que a era de
Schoenberg venha a ser a era de
Strauss? Veja-se a "Suíte do Cavaleiro da Rosa", extraída da ópera
de 1911. Toda a educação sentimental da aristocrata balzaquiana, abandonada pelo jovem
amante, tudo o que há de ironia,
melancolia e realismo no libreto
se condensa nesses 20 minutos,
que resumem mais do que uma
ópera. Música que vem tarde na
história, para quem chega tarde
também.
Música de Viena, ontem; música, hoje, de Nova York? A Filarmônica toca como se fosse sua.
Até um metronomista como Andrew Davis faz a orquestra tocar
Strauss com clarividência. Destaque, como sempre, para o trompista Philip Myers, com seu físico
de gênio da lâmpada. E para a
spalla Sheryl Staples, num solo
cheio de "schwung" (suingue).
Momento incrível da partitura:
o grande tema da valsa surge pela
primeira vez, tocado só pelas últimas fileiras dos violinos. Depois
vem crescendo, para a frente e para cima, até explodir trazendo e
levando tudo da vida. A filarmônica, que às 11h estava acordando,
chegou aqui na noite brilhante e
na noite escura da alma.
Lá fora, fazia sol, depois da chuva. Horário de almoço, gente entrando e saindo dos cafés. A
Broadway se perdendo na distância. E a gente se perdendo por ela,
carregando um século de música,
na direção de sabe-se lá que outros desastres e renovações.
Avaliação:
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
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