São Paulo, quarta-feira, 16 de janeiro de 2002

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MÚSICA ERUDITA

Filarmônica de NY mostra "escultura de materiais fluidos"

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Uma vez é pouco. É sempre pouco, quando se escuta música contemporânea; e especialmente pouco quando se escuta uma peça como o "Concerto para Piano e Orquestra" de Witold Lutoslawski (1913-94), espetacularmente bem tocado por Leif Ove Andsnes, com a Filarmônica de Nova York regida por Andrew Davis, sexta-feira passada no Avery Fisher Hall, em Nova York.
Da perspectiva do século 21, o século 20 começa a ficar um pouco diferente. Vinte anos atrás, ninguém duvidava de que a trindade Boulez-Berio-Stockhausen reinava sobre os tempos, na companhia de arcanjos como Ligeti e Cage. Hoje não é mais tão fácil nomear quem define musicalmente o fim-de-século; mas compositores como Schnittke e Lutoslawski têm de ser considerados.
O "Concerto para Piano e Orquestra" de Lutoslawski foi escrito em 1988, para seu compatriota polonês Krystian Zimerman. O último movimento faz uso da mesma forma "encadeada" que o compositor empregara em "Chain 1" (de 1983, para conjunto de câmara), "Chain 2" (1985, violino e orquestra) e "Chain 3" (1986, orquestra): materiais contrastantes que se sobrepõem, cada um começando antes de o outro terminar. Mas o "Concerto" não é uma "Chain 4". Suas ambições vão mais longe ainda; seja pela escala formal -quatro movimentos longos, tocados sem interrupção-, seja pela pressão afetiva, ele é o único rival possível para o "Concerto para Piano e Orquestra" de Ligeti, outra obra-prima inesperada aparecendo no mundo em plena década de 80.
Não foi muito antes que nasceu o pianista norueguês Leif Ove Andsnes. O nome é difícil, mas já se tornou conhecido pelo mundo. Técnica perfeita, a essa altura, todo pianista tem. Mas nem todos têm um senso tão criterioso de repertório e tanta clareza de pensamento. Só a audácia de escolher Lutoslawski já nos faz admirá-lo.
A apresentação de sexta foi um concerto matinal (às 11h). Mais ou menos 80% da platéia tinha cerca de 80 anos de idade, nessa metrópole de idosos animados, escorados em ações e pensões. Tanto maior a satisfação de ver o entusiasmo do público ao fim.
Virtuosístico, emocionalmente carregado, alternando cascatas de semicolcheias com uma cantilena em acordes, "Concerto" faz jus à definição do compositor de sua música, como "escultura feita de materiais fluidos". Mas a definição só descreve a forma; e o que comoveu foi o conteúdo: uma arte do desastre e da renovação.
Da perspectiva do século 21, o 20 começa mesmo a ficar diferente. Será possível que a era de Schoenberg venha a ser a era de Strauss? Veja-se a "Suíte do Cavaleiro da Rosa", extraída da ópera de 1911. Toda a educação sentimental da aristocrata balzaquiana, abandonada pelo jovem amante, tudo o que há de ironia, melancolia e realismo no libreto se condensa nesses 20 minutos, que resumem mais do que uma ópera. Música que vem tarde na história, para quem chega tarde também.
Música de Viena, ontem; música, hoje, de Nova York? A Filarmônica toca como se fosse sua. Até um metronomista como Andrew Davis faz a orquestra tocar Strauss com clarividência. Destaque, como sempre, para o trompista Philip Myers, com seu físico de gênio da lâmpada. E para a spalla Sheryl Staples, num solo cheio de "schwung" (suingue).
Momento incrível da partitura: o grande tema da valsa surge pela primeira vez, tocado só pelas últimas fileiras dos violinos. Depois vem crescendo, para a frente e para cima, até explodir trazendo e levando tudo da vida. A filarmônica, que às 11h estava acordando, chegou aqui na noite brilhante e na noite escura da alma.
Lá fora, fazia sol, depois da chuva. Horário de almoço, gente entrando e saindo dos cafés. A Broadway se perdendo na distância. E a gente se perdendo por ela, carregando um século de música, na direção de sabe-se lá que outros desastres e renovações.


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