São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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CINEMA

Ícones da fantasia juvenil, guerreiros de vidas libertinas como Alexandre e Aquiles são maquiados e suavizados por Hollywood

O mundo antigo é mais macho que o atual

MARK SIMPSON
DO "INDEPENDENT"

A história de Alexandre, o Grande, é a melhor história para garotos de todos os tempos. Envolve paixão, aventura, combate corporal em larga escala, camaradagem masculina e fuga das meninas. E, também, bebedeiras, assassinato em massa e loucura.
A viagem de 12 anos pelo mundo conhecido (e desconhecido) e a longa lista de vitórias em batalha que ele registrou representam a maior turnê de rock da história.
Alexandre é o herói imemorial, sem idade, da psicose dos meninos que dispõem da energia necessária para mudar o mundo, ou destrui-lo. Na história de Alexandre, a ambição tem alcance mundial, uma empreitada que deu forma ao Mundo Antigo.
Para todos os efeitos, ele inventou a idéia ocidental de império, globalização, e deixou sua marca na idéia que ainda fazemos sobre fama e sucesso. Alexandre não queria nada menos que ser dono do mundo. Chegou perto de consegui-lo, avançando por terras nunca dantes percorridas.
Seu sucesso se devia em parte à maneira pela qual conseguia retratar sua ambição e seu interesse pessoal como benéficos à Macedônia, ao pan-helenismo e a toda a humanidade.
Nisso, Alexandre pode ser visto como o modelo mais antigo para os EUA neoconservadores; ele chegou até mesmo a invadir e conquistar as terras que hoje formam o Iraque e o Afeganistão, além do Irã. Mas, como os neoconservadores, ele conseguia conquistar, mas não era capaz de, ou não tinha interesse em, administrar: rebeliões irrompiam freqüentemente, e seu império se dissolveu assim que ele morreu.
A cinebiografia de Oliver Stone poderia se chamar "Operação Liberdade Persa", porque o Alexandre do filme pronuncia platitudes sobre a libertação da Ásia; o rei Dario, da Pérsia, de barba e turbante, lembra Bin Laden, e, após sua derrota decisiva em Gaugamela, ele é perseguido por Alexandre nas montanhas. Isso, além da recente volta à moda dos épicos envolvendo espada e sandálias ("Gladiador", "Tróia", "Rei Arthur"), é o motivo para que Hollywood tenha redescoberto essa história como o "road movie" definitivo, a clássica ambição juvenil tão cara aos americanos, a busca desenfreada por território.
Além do filme de Stone, há rumores de que Baz Lurhmann estaria desenvolvendo projeto semelhante, com Leonardo DiCaprio no papel título. Até mesmo o "único-verdadeiro-católico" do mundo, Mel Gibson, planeja produzir uma série de TV de dez episódios, para a HBO, sobre o bandido pagão. Alexandre parte em nova jornada de conquista global.
Existe outra razão para que os épicos estejam de volta: oferecem idéias reconfortantes, se bem que falsas, sobre a masculinidade em um mundo metrossexual. No Mundo Antigo os homens eram homens. De fato, trajes bélicos parecem ter sido a moda preferencial de 2004. Foi o mesmo ano, afinal, em que a eleição dos EUA girou em torno de decidir qual dos candidatos seria o melhor para liderar as tropas -e foi decidida com base em quem ficava melhor saudando os soldados e parecia mais elegante de uniforme.
O principal motivo para o retorno dos épicos é que Hollywood decidiu emascular o passado e nos dizer que nunca houve heróis como esses. Que outra explicação poderia haver para usar Brad Pitt como Aquiles e Colin Farrell como Alexandre? São astros porque são brandos e lhes falta substância, e não o contrário.
O tagarelinha Farrell estava destinado a se tornar o Rei do Mundo Conhecedor, ou seja, Hollywood, porque é inofensivo. Farrell no papel de Alexandre ou Pitt como Aquiles servem para reassegurar uma geração que talvez tenha algumas lembranças sobre o tempo anterior à midiatização de todas as coisas e dizer-lhe que pode relaxar: nunca houve grandes homens ou era de grandeza. Havia apenas estilos diferentes. A masculinidade é uma questão de guarda-roupa. Como os exércitos de computação gráfica dos épicos modernos e as guerras dos planejadores do Pentágono, a masculinidade contemporânea é simulação e tecnologia.
A Macedônia era uma espécie de grande bar "leather" aberto o dia todo. Os gregos se sentiam escandalizados diante do comportamento "bárbaro" dos macedônios. Segundo fontes gregas afrescalhadas, os membros da corte de Felipe eram selecionados com base em sua habilidade no jogo, em sua capacidade de beber e em seu apetite sexual. A Macedônia era a espécie de lugar que o pessoal que hoje freqüenta bares sadomasoquistas teria muito medo de visitar. Isso apavora Hollywood.
No filme de Stone surgem imagens ocasionais, quase subliminares, da real natureza da masculinidade macedônia -guerreiros ruidosos quase se beijando no plano de fundo. Mas, a despeito dessas indicações, o erotismo pré-cristão dos quartéis macedônios derrota Stone exatamente porque é masculino demais.
Stone, o diretor macho de filmes sobre machos em que mulheres quase não têm papéis, desmunheca em "Alexandre". A masculinidade macedônia é masculina demais. Essa é a contradição dos épicos metroguerreiros: o Mundo Antigo é antigo, belicoso e macho demais para os EUA modernos.
Assim, a sodomia guerreira de Alexandre é transformada em algo moderno e inofensivo. Além da relação distorcida entre Alexandre e Hephaestion, apresentada como uma espécie de casamento gay moderno -sem sexo.
O lado masculino do homossexualismo é tão tabu hoje quanto o lado feminino é popular.


Tradução de Paulo Migliacci


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