São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"O Som da Montanha"

Kawabata retrata Japão lírico e natural no pós-guerra

Patriarca decadente conduz romance de vencedor do Prêmio Nobel de 1968

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora o ciclo dos 60 anos represente no Japão o renascimento de uma pessoa, é justamente quando chega a essa idade que Shingo Ogata sofre uma pequena crise de hemoptise. Um ano depois os sinais da decadência física e moral se multiplicam. A memória começa a falhar, a vista fica cansada e, principalmente, a família parece caminhar para o colapso.
O filho Shuichi mantém um caso extraconjugal com uma viúva da guerra. Enquanto Shingo se compadece da nora, trata com certa frieza a filha Fusako, que um dia aparece em casa arrastando as duas filhas pequenas. Ela está em desavença com o marido, que também a trai, além de ser viciado em drogas.
Parece o enredo de um melodrama naturalista, mas não podemos esquecer que o realismo expresso neste romance do Prêmio Nobel Yasunari Kawabata (1899-1972) vem calcado na tradição artística nipônica: desde os retratos da vida cotidiana captados nas pinturas de "ukiyoe", por exemplo, aos registros da natureza e dos sentimentos expressos pelos haicais.

Passagem das estações
As tensões e distensões dramáticas se aliam, assim, não só aos atos de vontade das personagens mas também às mudanças do mundo natural, à passagem das estações (fortemente marcada), aos detalhes de impressões sutis.
Esse procedimento narrativo já se entrevê no título. No início do romance, Shingo julga ouvir o som de um morro situado atrás de sua residência. O ruído, como um prenúncio da morte, infunde-lhe uma sensação de terror. O pai de sua mulher teria ouvido o mesmo ressoar pouco antes da irmã dela falecer. Como Shingo fora (e continuou sendo) apaixonado por essa cunhada, seu casamento não deixa de ser um substituto rebaixado de seu amor de adolescência.

Amor e morte
Amor e morte andam juntos também nas cenas envolvendo uma máscara comprada por Shingo à família de um amigo morto. A peça representa o eterno adolescente no teatro nô. Ao aproximá-la do rosto, porém, Shingo vê as feições andróginas adquirirem vida; ele vê emergir dali uma mulher fantasmagórica e sem mácula, "mais sensual do que uma mulher de verdade".
Então se pergunta se fora a máscara que se convertera em uma mulher real ou o contrário: "Tudo seria uma revelação do momento?".
Enquanto deixa exposta na parede uma outra máscara, adquirida na mesma ocasião, Shingo guarda a do adolescente "no fundo do armário, como se fosse um segredo".
Esses segredos inquietantes, esses sons quase inaudíveis e bastante particulares, parecem forçar a casca da sociedade japonesa recém-egressa da Segunda Guerra e, portanto, ferida, de certo modo ressentida e envergonhada e passando por profundas transformações.
É para esses dois lados -o social e o lírico, o moderno e o antigo, o mundano e o natural- que se desloca o olhar de Kawabata. Mas, se formos pesar um e outro, ao menos através da perspectiva do velho patriarca, devemos convir que a balança pende para o segundo elemento de cada um desses binômios, desfiando a teia de relações convulsas de onde brotam os sonhos e os pesadelos.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


O SOM DA MONTANHA

Autor: Yasunari Kawabata
Tradução: Meiko Shimon
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 53 (344 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Laurie toca em banda de rock
Próximo Texto: Vitrine
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.