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Crítica/"O Som da Montanha"
Kawabata retrata Japão lírico e natural no pós-guerra
Patriarca decadente conduz romance de vencedor do Prêmio Nobel de 1968
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Embora o ciclo dos 60
anos represente no Japão o renascimento de
uma pessoa, é justamente
quando chega a essa idade que
Shingo Ogata sofre uma pequena crise de hemoptise. Um ano
depois os sinais da decadência
física e moral se multiplicam. A
memória começa a falhar, a vista fica cansada e, principalmente, a família parece caminhar
para o colapso.
O filho Shuichi mantém um
caso extraconjugal com uma
viúva da guerra. Enquanto
Shingo se compadece da nora,
trata com certa frieza a filha
Fusako, que um dia aparece em
casa arrastando as duas filhas
pequenas. Ela está em desavença com o marido, que também a
trai, além de ser viciado em
drogas.
Parece o enredo de um melodrama naturalista, mas não podemos esquecer que o realismo
expresso neste romance do
Prêmio Nobel Yasunari Kawabata (1899-1972) vem calcado
na tradição artística nipônica:
desde os retratos da vida cotidiana captados nas pinturas de
"ukiyoe", por exemplo, aos registros da natureza e dos sentimentos expressos pelos haicais.
Passagem das estações
As tensões e distensões dramáticas se aliam, assim, não só
aos atos de vontade das personagens mas também às mudanças do mundo natural, à passagem das estações (fortemente
marcada), aos detalhes de impressões sutis.
Esse procedimento narrativo
já se entrevê no título. No início
do romance, Shingo julga ouvir
o som de um morro situado
atrás de sua residência. O ruído,
como um prenúncio da morte,
infunde-lhe uma sensação de
terror. O pai de sua mulher teria ouvido o mesmo ressoar
pouco antes da irmã dela falecer. Como Shingo fora (e continuou sendo) apaixonado por
essa cunhada, seu casamento
não deixa de ser um substituto
rebaixado de seu amor de adolescência.
Amor e morte
Amor e morte andam juntos
também nas cenas envolvendo
uma máscara comprada por
Shingo à família de um amigo
morto. A peça representa o
eterno adolescente no teatro
nô. Ao aproximá-la do rosto,
porém, Shingo vê as feições andróginas adquirirem vida; ele
vê emergir dali uma mulher
fantasmagórica e sem mácula,
"mais sensual do que uma mulher de verdade".
Então se pergunta se fora a
máscara que se convertera em
uma mulher real ou o contrário: "Tudo seria uma revelação
do momento?".
Enquanto deixa exposta na
parede uma outra máscara, adquirida na mesma ocasião,
Shingo guarda a do adolescente
"no fundo do armário, como se
fosse um segredo".
Esses segredos inquietantes,
esses sons quase inaudíveis e
bastante particulares, parecem
forçar a casca da sociedade japonesa recém-egressa da Segunda Guerra e, portanto, ferida, de certo modo ressentida e
envergonhada e passando por
profundas transformações.
É para esses dois lados -o social e o lírico, o moderno e o antigo, o mundano e o natural-
que se desloca o olhar de Kawabata. Mas, se formos pesar um e
outro, ao menos através da
perspectiva do velho patriarca,
devemos convir que a balança
pende para o segundo elemento de cada um desses binômios,
desfiando a teia de relações
convulsas de onde brotam os
sonhos e os pesadelos.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
O SOM DA MONTANHA
Autor: Yasunari Kawabata
Tradução: Meiko Shimon
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 53 (344 págs.)
Avaliação: ótimo
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