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RÉPLICA
Para quem, então, será a desfeita?
LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas
Refiro-me ao artigo de Marcelo
Coelho "Tim Burton está certo: é
mesmo um idiota", publicado em
02/02/00. Ele prega a disseminação ainda maior da preguiça intelectual pelo mote "não vi, não
gostei" ao tecer comentários sobre as obras de profundo humanismo e rigor exemplares como as
do chinês Zhang Yimou e do mestre iraniano Abbas Kiarostami.
Pode bem ser que Marcelo Coelho esteja falando em nome de
uma grande parcela da população
que não vai ao cinema, não vai ao
teatro, não lê livros e, se busca um
vídeo, mete os pés pela mãos nas
prateleiras da locadora, em busca
de bandalheira dublada ou pornografia, inculta que será na mágica história do cinema que nos
deu e dá tanto saber e emoção.
Certamente essa população a
quem o articulista libera para não
ver e não gostar também não lerá
a Folha. Para quem, então, será a
desfeita? Para nós que ainda acreditamos que a palavra escrita tem
o dom sedutor da persuasão, não
apenas um exercício de estilo?
Que ocupamos tempo e espaço
buscando no cinema o que ainda
pode servir de trincheira contra o
avanço das barbáries? Que chamamos a atenção a obras sensíveis que nos massageiam o intelecto e incitam a nossa tolerância
e humanismo?
O conceito de chato é bastante
variável. Podem ser chatos os
contos das "Mil e Uma Noites",
dependendo do grau de ansiedade com que eles forem lidos. A
tradição narrativa dos persas e do
seu cinema iraniano poderá vir
daí. E que mal haverá em se empregar crianças inocentes para revelar o quão sórdido se torna o
mundo dos adultos?
Nas raras vezes em que o cinema brasileiro mostrou as mazelas
da realidade por meio do olhar infantil -"Pixote", de Hector Babenco, e "Central do Brasil", de
Walter Salles (aliás, admirador e
seguidor confesso de Kiarostami)-, conquistou as platéias de
todo o mundo.
Ao querer conhecer Kiarostami,
em Tóquio, em 1994, o grande
Akira Kurosawa (que também fez
o fantástico "Dodeskaden" com
um menino de rua) presenteou a
Kiarostami com uma câmera Nikon fora de série e sentenciou:
"Você é um gênio e também o
mais habilidoso cineasta para lidar com crianças". E perguntou
como havia conseguido tanta naturalidade na cena em que o menino de "Onde Fica a Casa do
Meu Amigo?" chora na classe de
aula. Foi então que Kiarostami revelou o seu truque cruel: fez-se de
impaciente com as repetições de
cena e rasgou a foto polaróide do
menino (a única foto até então
vista e tirada por ele). A cena inscreve-se fácil na antologia do cinema e nada tem de chata.
Olhares
Como tantas outras cenas, também por meio do olhar de crianças que Truffaut, Bresson, Tavernier (não perca o seu "Quando
Tudo Começa", em cartaz em
SP), Spielberg, Bergman etc. consagraram personagens mirins. E,
claro, teve também o gênio oportunista dos mestres italianos Vittorio De Sica e Roberto Rosselini,
que inspiram com o neo-realismo
este novo cinema iraniano que
agora quer descartar.
Chegando ao ponto. O cinema
neo-realista da Itália do pós-guerra se passava em cenários de devastação. Física, com cidades destruídas pela guerra, e moral, com
a fome, a devassidão, a corrupção
e os conflitos ideológicos.
Seremos escapistas se ignorarmos nossas atuais mazelas e cenários de guerra. E é na particularidade de pequenas emoções, na
geografia árida e desconhecida,
no jeito estranho de se vestir e falar (inclusive nas relações Nordeste-Sudeste brasileiras), sejam
elas chineses ou iranianos, que essas emoções ganham dimensões
universais.
Não será à toa que Walter Salles
terá vencido o Festival de Berlim e
só perdido o Oscar de melhor filme estrangeiro ao poder de marketing da Miramax. Não será por
acaso que o "Cahiers du Cinéma"
dedicou uma edição inteira a Abbas Kiarostami com a manchete
"Abbas, o Magnífico"; não será
por acaso que "Nenhum a Menos" venceu o último Festival de
Veneza, quando tinha o severo
Emir Kusturika como presidente
do júri, reservando-se, coincidentemente, o prêmio especial do
mesmo júri ao próprio Abbas
Kiarostami com o seu novo "O
Vento nos Levará".
De acordo com Marcelo Coelho
na sua longa irritação com Tim
Burton. Este sim, um pós-moderno de araque. Mil e uma vezes a
reciclagem do neo-realismo italiano via Kiarostami, Makhmalbaf, Panahi, Jalili, Majidi e Walter
Salles. Felizmente nem tudo está
perdido sequer no cinema americano. O frescor da inteligência, a
radiografia rasante de uma sociedade escapista e que não se enxerga está em "Beleza Americana",
do estreante inglês Sam Mendes.
E ele não é apenas o melhor filme americano do ano. Pode ser o
da década. É de prestar muita
atenção em "Beleza Americana".
Todos os seus três personagens
adolescentes são vítimas de uma
infância perdida em meio a valores sociais de fachada.
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