São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2000


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RÉPLICA
Para quem, então, será a desfeita?

LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

Refiro-me ao artigo de Marcelo Coelho "Tim Burton está certo: é mesmo um idiota", publicado em 02/02/00. Ele prega a disseminação ainda maior da preguiça intelectual pelo mote "não vi, não gostei" ao tecer comentários sobre as obras de profundo humanismo e rigor exemplares como as do chinês Zhang Yimou e do mestre iraniano Abbas Kiarostami.
Pode bem ser que Marcelo Coelho esteja falando em nome de uma grande parcela da população que não vai ao cinema, não vai ao teatro, não lê livros e, se busca um vídeo, mete os pés pela mãos nas prateleiras da locadora, em busca de bandalheira dublada ou pornografia, inculta que será na mágica história do cinema que nos deu e dá tanto saber e emoção.
Certamente essa população a quem o articulista libera para não ver e não gostar também não lerá a Folha. Para quem, então, será a desfeita? Para nós que ainda acreditamos que a palavra escrita tem o dom sedutor da persuasão, não apenas um exercício de estilo? Que ocupamos tempo e espaço buscando no cinema o que ainda pode servir de trincheira contra o avanço das barbáries? Que chamamos a atenção a obras sensíveis que nos massageiam o intelecto e incitam a nossa tolerância e humanismo?
O conceito de chato é bastante variável. Podem ser chatos os contos das "Mil e Uma Noites", dependendo do grau de ansiedade com que eles forem lidos. A tradição narrativa dos persas e do seu cinema iraniano poderá vir daí. E que mal haverá em se empregar crianças inocentes para revelar o quão sórdido se torna o mundo dos adultos?
Nas raras vezes em que o cinema brasileiro mostrou as mazelas da realidade por meio do olhar infantil -"Pixote", de Hector Babenco, e "Central do Brasil", de Walter Salles (aliás, admirador e seguidor confesso de Kiarostami)-, conquistou as platéias de todo o mundo.
Ao querer conhecer Kiarostami, em Tóquio, em 1994, o grande Akira Kurosawa (que também fez o fantástico "Dodeskaden" com um menino de rua) presenteou a Kiarostami com uma câmera Nikon fora de série e sentenciou: "Você é um gênio e também o mais habilidoso cineasta para lidar com crianças". E perguntou como havia conseguido tanta naturalidade na cena em que o menino de "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" chora na classe de aula. Foi então que Kiarostami revelou o seu truque cruel: fez-se de impaciente com as repetições de cena e rasgou a foto polaróide do menino (a única foto até então vista e tirada por ele). A cena inscreve-se fácil na antologia do cinema e nada tem de chata.

Olhares
Como tantas outras cenas, também por meio do olhar de crianças que Truffaut, Bresson, Tavernier (não perca o seu "Quando Tudo Começa", em cartaz em SP), Spielberg, Bergman etc. consagraram personagens mirins. E, claro, teve também o gênio oportunista dos mestres italianos Vittorio De Sica e Roberto Rosselini, que inspiram com o neo-realismo este novo cinema iraniano que agora quer descartar.
Chegando ao ponto. O cinema neo-realista da Itália do pós-guerra se passava em cenários de devastação. Física, com cidades destruídas pela guerra, e moral, com a fome, a devassidão, a corrupção e os conflitos ideológicos.
Seremos escapistas se ignorarmos nossas atuais mazelas e cenários de guerra. E é na particularidade de pequenas emoções, na geografia árida e desconhecida, no jeito estranho de se vestir e falar (inclusive nas relações Nordeste-Sudeste brasileiras), sejam elas chineses ou iranianos, que essas emoções ganham dimensões universais.
Não será à toa que Walter Salles terá vencido o Festival de Berlim e só perdido o Oscar de melhor filme estrangeiro ao poder de marketing da Miramax. Não será por acaso que o "Cahiers du Cinéma" dedicou uma edição inteira a Abbas Kiarostami com a manchete "Abbas, o Magnífico"; não será por acaso que "Nenhum a Menos" venceu o último Festival de Veneza, quando tinha o severo Emir Kusturika como presidente do júri, reservando-se, coincidentemente, o prêmio especial do mesmo júri ao próprio Abbas Kiarostami com o seu novo "O Vento nos Levará".
De acordo com Marcelo Coelho na sua longa irritação com Tim Burton. Este sim, um pós-moderno de araque. Mil e uma vezes a reciclagem do neo-realismo italiano via Kiarostami, Makhmalbaf, Panahi, Jalili, Majidi e Walter Salles. Felizmente nem tudo está perdido sequer no cinema americano. O frescor da inteligência, a radiografia rasante de uma sociedade escapista e que não se enxerga está em "Beleza Americana", do estreante inglês Sam Mendes.
E ele não é apenas o melhor filme americano do ano. Pode ser o da década. É de prestar muita atenção em "Beleza Americana". Todos os seus três personagens adolescentes são vítimas de uma infância perdida em meio a valores sociais de fachada.


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