São Paulo, sábado, 16 de março de 2002

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Gay Talese tira as roupas da América

Associated Press
Performance organizada pelo fotógrafo nova-iorquino Spencer Tunick, em 26 de maio de 2001



Em entrevista à Folha, um dos jornalistas norte-americanos mais importantes comenta seu polêmico livro "A Mulher do Próximo", sobre a sexualidade nos EUA, que ganha nova edição no Brasil


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Se fosse fazer um perfil de si mesmo, o detalhista Gay Talese obrigatoriamente gastaria uma bela coleção de parágrafos apenas para descrever os ternos bem cortados, as gravatas, as camisas engomadas e os suspensórios que usa desde os tempos de colégio.
Filho de um alfaiate italiano que emigrou para uma pequena ilha em Nova Jersey, Talese era famoso já aos 15 anos pela elegância, até exagerada, dos trajes que passeava pela High School.
Foi lá mesmo, nessa mesma idade, que o garoto engravatado começou a construir a única elegância que ofuscaria o estilo de seus ternos. Seu jornalismo.
Do discreto jornaleco local "Ocean City Sentinel-Ledger" ao gigante "The New York Times", onde ficou por 12 anos, foi um pulo; e outro pulo, muito maior, foi o que Talese deu usando o diário nova-iorquino como trampolim.
Nas páginas do jornal, que mais tarde seria tema do seu famoso livro "O Reino e o Poder", ele começou a praticar o que seria conhecido como "novo jornalismo", um gênero que trazia para as reportagens artifícios literários. Levou o universo dos livros ao jornal e o do jornal aos livros.
O mais barulhento de todos eles, foi o volume "A Mulher do Próximo", que publicou em 1980. Fruto de nove anos de pesquisas, nos quais chegou até a ser gerente de uma casa de massagens, o homem dos trajes elegantes mergulhou como ninguém na América sem roupas.
O livro está sendo reeditado no Brasil agora pela Companhia das Letras. Foi para falar dessa obra que Gay Talese concedeu a seguinte entrevista por fax para a Folha.
Nela, o escritor e jornalista de 70 anos comenta a sexualidade norte-americana de hoje e se despe para exibir idéias polêmicas sobre a Aids. Leia a seguir alguns trechos da entrevista.

Folha - O sr. se considera azarado por ter publicado "A Mulher do Próximo", fruto de nove anos de pesquisa sobre o sexo nos Estados Unidos, poucos meses antes de que se detectassem os primeiros casos de Aids na América? O livro não ficou particularmente datado?
Gay Talese -
Não. Meu livro é a história de um período da história americana. É um livro sobre a revolução sexual norte-americana da metade do século 20, que continua até hoje, mesmo com a Aids.
Ninguém jamais vai admitir na imprensa, mas a Aids sempre foi justamente marginalizada. É o flagelo do homem gay, sim, mas essa não é toda a verdade. A Aids vem do sexo gay e das drogas, agulhas contaminadas sendo passadas de mão em mão e de saunas apinhadas de estranhos, com um tipo de promiscuidade tão arriscada quanto a dos viciados. Mas a mídia norte-americana não tem coragem de apontar o homem gay como o principal responsável pelo problema da Aids, por isso que as coisas estão como estão, e não serei eu quem fará dessa questão uma grande batalha política ou social. Certamente não é politicamente correto aparecer como o grande perseguidor de gays, o que, de resto, eu não sou.

Folha - No livro, o sr. trata das juventudes norte-americanas dos anos 50 a 70. O que o sr. pensa dos jovens de agora dos EUA?
Talese -
O jovem norte-americano não é particularmente nenhuma coisa. Não é conservador, não é radical nem em cima do muro. A cara do jovem americano hoje é muito difícil de ser identificada, o que não acontecia na metade do século 20. Mesmo fisicamente. Hoje existe uma influência grande asiática e de vários outros rasgos mais internacionais misturados no que sobrou da maioria americana: branca, pele clara, loira.
Também posso afirmar que hoje existe mais sexo nos campi, mais fornicação para lá e para cá entre os estudantes do que havia nos anos 60. A diferença é que hoje ninguém liga, os pais não reclamam, a faculdade é indiferente.

Folha - No último capítulo de "A Mulher do Próximo" o sr. fala de experiências sexuais de um tal Gay Talese. Qual foi a sensação de ser personagem de seu próprio livro?
Talese -
Achei que falar sobre mim mesmo era o único jeito de reunir todos os temas que o livro circunda. Muitos me perguntam se não me arrependo de ter me exposto. Não. Penso que se fizesse de outro jeito estaria sendo evasivo, uma tentativa de me esconder por trás da minha faceta repórter.
No meu caso, devo dizer que nada do que descrevi foi inventado. É o que aconteceu para as pessoas sobre as quais escrevo, nos lugares que descrevo, o que faz de meu livro um retrato da vida privada na América, mais especificamente das fantasias masculinas e da negociação que as mulheres fazem com essa fantasia.

Folha - No livro o sr. usa personagens reais, descrevendo os lados obscuros deles. Quantos casamentos o sr. acha que seu livro destruiu?
Talese -
Se acabei com casamentos? O meu mesmo não acabou, e eu era a vítima mais imediata. Este ano eu e Nan completamos nosso 42º aniversário. Os casamentos não duram por várias razões, mas uma das razões pelas quais tantas pessoas se divorciam é que eles acham que a "felicidade" é a prioridade suprema, enquanto a felicidade de verdade (como romance, sexo, ou ganhar na loteria) é encarada como alegria de curta duração.
Assuntos muito mais sólidos mantém casais juntos, e a grande qualidade pode ser resumida em uma palavra: respeito. Nada é mais importante do que isso.

Folha - O livro foi muito criticado na época em que foi lançado, gerou muita polêmica. Recentemente, quando foi reeditado em versão de bolso, o sr. colheu uma porção de elogios rasgados. Ao que atribui essa mudança?
Talese -
"Mulher" foi realmente muito criticado na época. Mas muitos críticos que escreveram sobre o livro estavam irritados com ele antes mesmo do lançamento. É que ele foi precedido de uma fanfarra enorme em torno da história de eu ter passado nove anos para fazê-lo e, sobretudo, de eu ter recebido, três meses antes do livro sair da gráfica, uma oferta recordista de Hollywood pelos direitos do livro. Eu recebi US$ 2,5 milhões. Por isso tudo, muita inveja circundou "A Mulher do Próximo" na época.

Folha - Quem foi a pessoa mais importante para a sexualidade norte-americana do século 20?
Talese -
Hugh Hefner, o criador da revista "Playboy". Ele permitiu que nos imunizássemos à nudez.


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