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CRÍTICA
Autor flagra os EUA pela lente do desejo
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
No início da década de 70, o
escritor e jornalista Gay Talese se dedicou a uma pesquisa
que fez esbugalhar os olhos da
burguesia americana, mesmo naqueles tempos de crescente tolerância moral. Tornou-se "habitué" de casas de massagens e até
mesmo gerente de uma delas; frequentou clube de casais, onde tomou parte de encontros orgiásticos. Traiu com regularidade a
mulher em nome do novo livro
que escrevia, cujo tema era "a nova abertura do país para o sexo."
Com exceção do casamento,
apropriadamente abalado por
conta dos métodos investigativos
do autor, este livro, lançado em
1980 com o título de "A Mulher do
Próximo", rendeu frutos felizes.
Para se ter uma idéia, a prestigiosa
editora Knopf contratou seus três
livros subsequentes por 2,5 milhões de dólares. Em comparação,
os 2.500 dólares de adiantamento
que Talese recebeu por uma obra
de início de carreira soam pífios.
Só a crítica não o ajudou muito.
O escritor foi acusado de omitir
aspectos da revolução sexual, como a luta pelos direitos dos homossexuais; de tratar com excessiva seriedade um assunto dionisíaco como o sexo; de relegar o
papel da mulher a segundo plano.
O que essas acusações parecem
esquecer, e nos afigura essencial
para entender não só o tom como
a estratégia narrativa usada pelo
autor, é que o tema principal não
é exatamente o sexo, mas o comportamento da classe média americana diante do sexo e, sobretudo, a questão da cupidez e, em última análise, do "voyeurismo".
O livro é um exemplar do chamado "novo jornalismo", que Talese ajudou a desenvolver. Todos
os personagens são reais. O enredo é baseado em intensa pesquisa,
fruto de sua "reportagem participante" e de "centenas" de entrevistas. Esse material nos é, contudo, transmitido como se fora uma
ficção, nos é "narrado" com a técnica do romance.
O romance da "revolução sexual dos anos 60 e 70" se abre com
uma cena de masturbação e se encerra com a volta de Talese à sua
cidade natal, Ocean City, em Nova Jersey. A cena final conclui o
bastante comentado trecho em
que o escritor se torna personagem do livro. Talese visita um
campo de nudismo histórico, o
Sunshine Park. No píer, já sem
roupa, ele observa várias embarcações apinharem-se na costa.
Ocupados em bisbilhotar a nudez
alheia, alguns tripulantes munem-se até de binóculos. "Eram
voyeurs desavergonhados olhando para ele", diz o autor, "e Talese
retribuiu os olhares."
Menos do que o sexo, o livro trata do desejo, da curiosidade, da
vergonha ou da indignação despertados pelo olhar. Também é a
investigação acerca dos limites cada vez mais largos dentro dos
quais a sociedade americana foi
permitindo que seus cidadãos vissem (e lessem e imaginassem).
Não é à toa que grande parte do livro se passe em sessões de tribunal, nas quais a definição de pornografia e obscenidade era discutida de par com o direito à livre
expressão propalado pela Primeira Emenda da Constituição dos
Estados Unidos.
Não é à toa também que haja
bem pouco sexo no livro. OK, temos a descrição de algumas orgias e de encontros amorosos,
principalmente no retiro Sandstone, dos quais participaram o inglês Alex Comfort, autor de "Os
Prazeres do Sexo", a artista plástica feminista Betty Dodson e a antropóloga ninfomaníaca Sally
Binford. Mas o quadro é quase
púdico. A elegância do estilo de
Talese vela qualquer lubricidade.
Mais interessante é observar a
reação do típico casal americano
de classe média, John e Judith Bullaro, pioneiros de Sandstone,
diante das investidas dos fundadores do clube californiano, John
e Barbara Williamson. Talese é
magistral ao mostrar como a culpa, o sentimento de posse, o ciúme e até o desejo de matar se imiscuíam no projeto de liberação sexual defendido pelos Williamson
e pretendido pelos Bullaro.
Talese se detém igualmente na
trajetória do fundador da "Playboy", Hugh Hefner, que inaugurou a revista com investimento
inicial pessoal de apenas 600 dólares, 500 dos quais desembolsados
pela foto de Marilyn Monroe nua,
que enfeitou o primeiro número.
Muita tinta também é gasta para
contar a rusga entre editores e distribuidores de literatura erótica e
a justiça americana. É preciso notar que boa parte desse material
proibido consistia em obras hoje
consideradas inofensivas, como
"Trópico de Câncer", de Henry
Miller; "Lolita", de Nabokov;
"Nossa Senhora das Flores", de
Jean Genet, e o "Kama Sutra". Dependendo da época, porém, publicá-las podia dar cadeia.
O editor Samuel Roth foi condenado, na década de 50, a cinco
anos de prisão por "propaganda
sexualmente sugestiva". Vinte
anos depois, William Holding foi
trancafiado por ter editado o relatório da Comissão contra a Obscenidade e a Pornografia junto
com ilustrações semelhantes às
que teriam inspirado o trabalho
do comitê presidencial: fotos de
orgias, penetrações com vibradores, homossexualismo masculino
e gravuras eróticas de Picasso.
Talese não investiga o submundo da pornografia, há meras menções, como a que faz ao clássico
"A Garganta Profunda", e não se
interessa pelos "basfonds", com
exceção do quase casto "alívio
manual" oferecido pelas casas de
massagens. Seu interesse reside
na mudança dos costumes de
uma parcela da sociedade: a sua.
Vê-lo como personagem no final
do livro indica uma inversão de
perspectiva: o olhar do autor, que
até então tacitamente nos guiou
pelo reino dos desejos interditos,
volta-se para si próprio.
Recentemente, Talese tem falado de uma "continuação" de "A
Mulher do Próximo". O autor discorreria sobre a impotência e a
castração. Para isso, já cobriu o
julgamento de John e Lorena
Bobbitt. Nada mais apropriado a
uma nova crônica centrada nos
rigores da era posterior à Aids. Da
pílula ao Viagra, algo mudou na
mentalidade burguesa.
A Mulher do Próximo
Autor: Gay Talese
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41,50 (472 págs.)
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