São Paulo, sábado, 16 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Autor flagra os EUA pela lente do desejo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

No início da década de 70, o escritor e jornalista Gay Talese se dedicou a uma pesquisa que fez esbugalhar os olhos da burguesia americana, mesmo naqueles tempos de crescente tolerância moral. Tornou-se "habitué" de casas de massagens e até mesmo gerente de uma delas; frequentou clube de casais, onde tomou parte de encontros orgiásticos. Traiu com regularidade a mulher em nome do novo livro que escrevia, cujo tema era "a nova abertura do país para o sexo."
Com exceção do casamento, apropriadamente abalado por conta dos métodos investigativos do autor, este livro, lançado em 1980 com o título de "A Mulher do Próximo", rendeu frutos felizes. Para se ter uma idéia, a prestigiosa editora Knopf contratou seus três livros subsequentes por 2,5 milhões de dólares. Em comparação, os 2.500 dólares de adiantamento que Talese recebeu por uma obra de início de carreira soam pífios.
Só a crítica não o ajudou muito. O escritor foi acusado de omitir aspectos da revolução sexual, como a luta pelos direitos dos homossexuais; de tratar com excessiva seriedade um assunto dionisíaco como o sexo; de relegar o papel da mulher a segundo plano.
O que essas acusações parecem esquecer, e nos afigura essencial para entender não só o tom como a estratégia narrativa usada pelo autor, é que o tema principal não é exatamente o sexo, mas o comportamento da classe média americana diante do sexo e, sobretudo, a questão da cupidez e, em última análise, do "voyeurismo".
O livro é um exemplar do chamado "novo jornalismo", que Talese ajudou a desenvolver. Todos os personagens são reais. O enredo é baseado em intensa pesquisa, fruto de sua "reportagem participante" e de "centenas" de entrevistas. Esse material nos é, contudo, transmitido como se fora uma ficção, nos é "narrado" com a técnica do romance.
O romance da "revolução sexual dos anos 60 e 70" se abre com uma cena de masturbação e se encerra com a volta de Talese à sua cidade natal, Ocean City, em Nova Jersey. A cena final conclui o bastante comentado trecho em que o escritor se torna personagem do livro. Talese visita um campo de nudismo histórico, o Sunshine Park. No píer, já sem roupa, ele observa várias embarcações apinharem-se na costa. Ocupados em bisbilhotar a nudez alheia, alguns tripulantes munem-se até de binóculos. "Eram voyeurs desavergonhados olhando para ele", diz o autor, "e Talese retribuiu os olhares."
Menos do que o sexo, o livro trata do desejo, da curiosidade, da vergonha ou da indignação despertados pelo olhar. Também é a investigação acerca dos limites cada vez mais largos dentro dos quais a sociedade americana foi permitindo que seus cidadãos vissem (e lessem e imaginassem). Não é à toa que grande parte do livro se passe em sessões de tribunal, nas quais a definição de pornografia e obscenidade era discutida de par com o direito à livre expressão propalado pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.
Não é à toa também que haja bem pouco sexo no livro. OK, temos a descrição de algumas orgias e de encontros amorosos, principalmente no retiro Sandstone, dos quais participaram o inglês Alex Comfort, autor de "Os Prazeres do Sexo", a artista plástica feminista Betty Dodson e a antropóloga ninfomaníaca Sally Binford. Mas o quadro é quase púdico. A elegância do estilo de Talese vela qualquer lubricidade.
Mais interessante é observar a reação do típico casal americano de classe média, John e Judith Bullaro, pioneiros de Sandstone, diante das investidas dos fundadores do clube californiano, John e Barbara Williamson. Talese é magistral ao mostrar como a culpa, o sentimento de posse, o ciúme e até o desejo de matar se imiscuíam no projeto de liberação sexual defendido pelos Williamson e pretendido pelos Bullaro.
Talese se detém igualmente na trajetória do fundador da "Playboy", Hugh Hefner, que inaugurou a revista com investimento inicial pessoal de apenas 600 dólares, 500 dos quais desembolsados pela foto de Marilyn Monroe nua, que enfeitou o primeiro número. Muita tinta também é gasta para contar a rusga entre editores e distribuidores de literatura erótica e a justiça americana. É preciso notar que boa parte desse material proibido consistia em obras hoje consideradas inofensivas, como "Trópico de Câncer", de Henry Miller; "Lolita", de Nabokov; "Nossa Senhora das Flores", de Jean Genet, e o "Kama Sutra". Dependendo da época, porém, publicá-las podia dar cadeia.
O editor Samuel Roth foi condenado, na década de 50, a cinco anos de prisão por "propaganda sexualmente sugestiva". Vinte anos depois, William Holding foi trancafiado por ter editado o relatório da Comissão contra a Obscenidade e a Pornografia junto com ilustrações semelhantes às que teriam inspirado o trabalho do comitê presidencial: fotos de orgias, penetrações com vibradores, homossexualismo masculino e gravuras eróticas de Picasso.
Talese não investiga o submundo da pornografia, há meras menções, como a que faz ao clássico "A Garganta Profunda", e não se interessa pelos "basfonds", com exceção do quase casto "alívio manual" oferecido pelas casas de massagens. Seu interesse reside na mudança dos costumes de uma parcela da sociedade: a sua. Vê-lo como personagem no final do livro indica uma inversão de perspectiva: o olhar do autor, que até então tacitamente nos guiou pelo reino dos desejos interditos, volta-se para si próprio.
Recentemente, Talese tem falado de uma "continuação" de "A Mulher do Próximo". O autor discorreria sobre a impotência e a castração. Para isso, já cobriu o julgamento de John e Lorena Bobbitt. Nada mais apropriado a uma nova crônica centrada nos rigores da era posterior à Aids. Da pílula ao Viagra, algo mudou na mentalidade burguesa.


A Mulher do Próximo     
Autor: Gay Talese
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41,50 (472 págs.)




Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.