São Paulo, sábado, 16 de março de 2002

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"O ÚLTIMO LUGAR DA TERRA"

Jornalista relata os bastidores da corrida pela conquista do pólo

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Enfim quebrou-se o gelo. Noventa anos após a morte do capitão britânico Robert Falcon Scott no retorno do pólo Sul, em março de 1912, o Brasil ganha a primeira edição de um clássico da exploração polar: "O Último Lugar da Terra", que revela os bastidores da corrida entre Scott e o norueguês Roald Amundsen pela conquista do pólo.
No livro, o jornalista britânico Roland Huntford desfaz o mito criado em torno de seu conterrâneo após a tragédia. Scott, considerado um mártir do Império Britânico, aparece como um líder atrapalhado, incompetente e até mesmo mau-caráter, que levou a a expedição ao desastre.
Não se trata de mera blasfêmia. Para escrever o livro, publicado em inglês em 1979, Huntford pesquisou todos os documentos da época sobre a corrida ao pólo. No livro, o jornalista reconstrói as trajetórias dos dois exploradores para mostrar as diferenças que fizeram do norueguês o primeiro homem a atingir o pólo Sul, em 15 de dezembro de 1911 (Scott só chegaria ali em 16 de janeiro).
Roald Amundsen era um planejador obstinado, que havia abandonado a faculdade de medicina aos 23 anos para se dedicar à exploração polar. Inspirado por Fritjof Nansen, o primeiro homem a atravessar de trenó a calota polar da Groenlândia, Amundsen passou a juventude sonhando com a conquista do pólo Norte. Durante dez anos, planejou sua grande viagem, só para descobrir, um ano antes da partida, que havia sido batido por Robert Peary -que o conquistara em 1909.
Pragmático, Amundsen mudou de planos: já que não poderia ser o primeiro no pólo Norte, rumaria para o Sul. Usaria como transporte cães esquimós e esquis, que já haviam demonstrado sua eficiência em expedições anteriores.
Robert Falcon Scott era o arquétipo do herói romântico. Capitão da Marinha Real britânica, descrito como um oficial medíocre, via na exploração polar um caminho para a promoção a almirante.
Segundo Huntford, Scott rejeitava toda tecnologia de exploração que não houvesse sido criada pelos súditos de Sua Majestade. Os noruegueses usavam esquis e cães? Muito bem: os bravos britânicos usariam pôneis e tração humana para puxar seus trenós.
Os pôneis, que não comem carne e afundam na neve, foram em parte responsáveis pelo atraso de Scott em partir para o pólo, fazendo a jornada de volta em março, em meio a temperaturas de até -40C. Além disso, os britânicos saíram com a quantidade exata de comida e combustível, sem calcular atrasos. Para Huntford, no entanto, Scott fez uma opção consciente por morrer. Pior, teria convencido seus companheiros Edward Wilson e Henry Bowers de que o suicídio era preferível à vergonha de voltar a Londres em segundo e explicar as mortes dos dois outros membros da equipe, Edgar Evans e Lawrence Oates.
É aí que o jornalista cai em um velho golpe: de tanto pesquisar seu biografado, passa a amá-lo ou odiá-lo. Ao longo das 724 páginas do livro, Huntford parece adquirir uma antipatia progressiva por Scott. Parece improvável que dois oficiais experientes sejam convencidos a morrer -a 20 km do depósito de alimentos que lhes salvaria as vidas- por simples obediência ao comandante.
O jornalista também usa extratos dos diários de membros da expedição como fontes de acusação. Mas ignora as anotações de Scott como argumentos de defesa. Ignora, também, as falhas de caráter de Amundsen, como o calote que deu em seus credores ao partir escondido para a Antártida. O resultado é um livro emocionante, mas injusto. Amundsen venceu porque era melhor explorador, não melhor pessoa que Scott.
De qualquer maneira, a redescoberta da saga desses homens faz terras médias, anéis e orcs parecerem brincadeira de criança perto das aventuras do mundo real.


O Último Lugar da Terra    
Autor: Roland Huntford
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cia das Letras
Quanto: R$ 49 (724 págs.)




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