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MEMÓRIA
Nascida em 32, autora de "Carne em Delírio" morreu no último dia 8
Literatura de Cassandra Rios educou uma geração
MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA
Cena 1: Anos 70. Os amigos de
escola Marcelo, Marcus e Eduardo, todos com seus 15 anos, viajam num ônibus pela Dutra.
Marcelo lê um livro, rasga a página lida e entrega para os amigos.
Eventualmente, eles comentam a
narrativa. Eventualmente, algum
deles se levanta para ir ao banheiro. Vai fazer justiça com as próprias mãos.
Close: A capa era de "A Gata" ou
"Carne em Delírio", livros que
prestavam um grande serviço a
milhares de leitores, passavam de
mão em mão, alimentavam a
imaginação e acabavam educando uma geração.
São obras da escritora Cassandra Rios, que morreu na semana
passada em São Paulo.
Cena 2: Da janela do ônibus, vê-se um Brasil conservador. Nada
de revistas eróticas nas bancas.
Nada de programas de TV analisando a sexualidade e seus labirintos. Nada de educação sexual
nas escolas. Nada de amor livre,
sexo antes do casamento, concepção. E, sim, as mulheres não sentiam prazer na relação, dizia-se.
Cena 3: Corta para o cemitério
Santo Amaro, em São Paulo, março de 2002. No enterro de Cassandra Rios, na verdade Odete Rios,
nascida em 1932, um parente recita uma frase dita por ela, enquanto joga terra sobre o caixão: "Se o
homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada".
Cena 4: Nas estantes das maiores livrarias do país, procura-se
em vão uma obra da autora, que
vendia 300 mil exemplares por
ano à sua época.
Também não há referências sobre ela em sites de livrarias. Encontra-se apenas um livro, que
amarela num sebo, mas tem e teve
lugar reservado na memória de
muitos -como o cantor Cazuza e
a escritora Fernanda Young.
Contexto
Como dita os manuais da literatura comparada, para entender
Cassandra Rios é preciso entender sua época e ambiente.
Não havia imagens de sexo, a
não ser em livros de medicina legal. No Brasil pré-contracultura,
taras individuais não eram debatidas. O estranho era considerado
desvio a ser combatido pelo Estado, com a censura.
A exibição de seios só era permitida em documentários sobre
índios. "Amaral Neto, o Repórter" serviu para muitos adolescentes descobrirem o que havia
escondido numa mulher.
Cassandra falava às claras sobre
o prazer feminino. Talvez por isso
tenha sido uma das personalidades mais censuradas.
Tratava-se de uma mulher escrevendo sobre tesão de mulher,
numa sociedade cuja predominância religiosa afirmava que a
mulher apenas se deitava com um
homem para gerar filhos de Deus.
Seus livros surpreendiam. Cassandra rivalizava com uma outra
autora erótica e sua contemporânea, Adelaide Carraro, assim como Hemingway rivalizou com
Scott Fitzgerald.
Enquanto Cassandra tinha um
estilo mais ousado, extrovertido,
Adelaide era linear, contida. Em
Cassandra, há empresários corruptos, que fazem despachos em
terreiros de umbanda.
Cassandra já no título era direta,
como, por exemplo, "A Volúpia
do Pecado", de 1948, seu livro de
estréia, que a transformou numa
das autoras mais vendidas da história da literatura brasileira.
Ela o escreveu com 16 anos. Fazia uma literatura assumidamente popular. Eram livros baratos.
Havia desenhos provocantes nas
capas: moças oferecidas em poses
sutilmente sensuais.
Nas poucas entrevistas que deu,
ela dizia que, no fundo, era uma
simples dona-de-casa conservadora, que suas narrativas fluíam
sem controle e que ela mesma ficava enrubescida com aquelas cenas mais quentes.
Chegou a escrever um livro "sério", "MezzAmaro", uma autobiografia que não fala de sexo,
com 400 páginas. Chegou a ter o
livro "A Paranóica" adaptado para o cinema, sobre uma filha que
descobre que seu pai é falso e quer
apenas roubar a grana da família.
Na tela, o livro virou "Ariella", revelando a atriz Nicole Puzzi.
Em muitas faculdades brasileiras, pesquisadores deveriam estar
estudando Cassandra Rios. Foi
uma precursora. Sua importância
não será esquecida. Nem a libido
de suas personagens.
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