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CONTARDO CALLIGARIS
"Mentiras Sinceras"
Espero que "Mentiras Sinceras", de Julian Fellowes, continue em cartaz e que os amantes
e os amados (casados ou não, heterossexuais ou homossexuais,
tanto faz) tenham o tempo de assistir ao filme, em massa.
O título original é "Separate
Lies", mentiras separadas, mas
gostei da tradução brasileira.
"Mentiras Sinceras" evoca o estranho balé de verdade e mentira
em todo triângulo amoroso:
"Minto quando escondo minha
paixão por outro ou por outra?
Ou, então, a verdadeira mentira é
o casamento que vivo e a insatisfação que escondo?".
Ser sempre sincero não é fácil.
No filme, Anne (Emily Watson)
tenta ser sincera com o marido,
James (Tom Wilkinson), e também com seu próprio desejo. Mas
a verdade não é simples: Anne,
por exemplo, não sabe bem o que
a joga nos braços de William (Rupert Everett), seu amante. Quando explica ao marido o que lhe
acontece, ela não invoca o amor
ou a paixão; apenas consegue dizer que não sabe renunciar a William porque os encontros com ele
são "easy", fáceis: o amante não
lhe pede nada ou quase.
Talvez a maioria dos relacionamentos amorosos adoeçam e
morram por causa disto: não porque o parceiro deixou crescer
uma barriga displicente nem porque a gente estaria cansado da
mesmice e a fim de novidades,
mas porque, ao vivermos juntos,
aos poucos, perdemos a generosidade. E a generosidade é (ou, melhor, deveria ser) o próprio do
amor; ela está quase sempre presente, aliás, quando a gente se
apaixona. Explico.
O amor que nasce idealiza o
amado, mas essa idealização é
contemplativa, não é normativa.
Ou seja, pedimos, eventualmente,
que o amado ou a amada estejam
perto de nós, mas não que mudem e ainda menos que renunciem a serem quem eles são.
Claro, enxergamos neles algo
que eles podem não ser, mas o encanto amoroso é justamente esse
engano: "Seja como você é, pois é
assim que descubro em você tudo
o que quero, mesmo que talvez
você não seja nada disso". Em suma, o amor, inicialmente, é respeitoso. Se você não é bem o que
vejo em você, o engano é meu;
amar consiste em querer e saber
continuar se enganando.
As coisas mudam quando começamos a medir a distância entre o ser amado e o ideal que lhe
penduramos nas costas. De repente, o engano nos parece ser
uma artimanha do outro; é ele
que deveria se emendar para voltar a ser o ideal que inspirava
nosso amor.
O encanto do começo se transforma, assim, numa lista inesgotável de pequenas ou grandes exigências. Tudo o que pedimos ao
ser amado (que ele ganhe mais,
que seja simpático com nossos
amigos, que nos acolha com um
sorriso, que pare de roncar no
nosso ouvido, que leia Goethe em
alemão, que não coma com as
mãos, que não caminhe na nossa
frente na rua, que esteja em casa
na hora certa) é apenas um derivativo. O que queremos é a volta
do que nós mesmos perdemos: o
encanto pelo qual enxergávamos
nosso ideal no ser amado. Esse
encanto impunha o respeito, ou
seja, permitia que deixássemos o
amado e a amada serem, simplesmente, eles mesmos.
A trama de "Mentiras Sinceras"
é a de sempre quando, num casal,
um dos dois se interessa por um
terceiro. Anne ama James e James
ama Anne. Mas Anne encontra
William, que não tem nada de especial, mas é "easy", e ela quer viver esse amor. James sofre. Anne
também sofre. Não se sabe bem
como a história de Anne e James
terminará (minha hipótese é que
o casal resistirá).
A história acontece numa sólida burguesia (ou mesmo aristocracia) inglesa, em que a dificuldade do triângulo amoroso não é
parasitada por problemas financeiros ("Se nos separarmos, quem
ficará com o quê?"). Anne e James
não têm filhos e não devem se
preocupar com os efeitos de seus
atos e sentimentos nas crianças
("Como ficarão? O que pensarão?
Quanto anos de análise tudo isso
lhes custará?"). O triângulo amoroso, em suma, é reduzido ao essencial.
É também graças a essa redução ao essencial que o filme pode
oferecer uma extraordinária lição
de amor. Anne é exemplar por ela
não saber as razões de seu amor
por William e por continuar
amando James. James é exemplar
porque sofre, mas trabalha com
afinco para evitar transformar
seu sofrimento em mais uma cobrança ciumenta. Ao contrário,
James se serve da ocasião para
reinventar sua capacidade de
amar Anne com a generosidade e
o respeito do amor que nasce, ou
seja, sem lhe pedir que ela seja diferente do que ela é.
A lição que James aprende (e
nós com ele) é que o amor, quando não é atravessado e deformado pelas piores exigências neuróticas e narcisistas, confere ao
amante um dever para com o
amado, mas nenhum direito sobre ele.
Jacques Lacan, um grande psicanalista francês, disse mais de
uma vez (a primeira foi, talvez,
em seu seminário de 56/57) que o
maior sinal de amor é (deveria
ser?) o dom do que a gente não
tem. Algo assim: "Ofereço-lhe o
que não tenho e que você não
quer e não me pede". Seja qual for
nossa interpretação desse aforismo, ele é certamente o oposto da
miséria amorosa ordinária, em
que amar significa pedir ao outro
o que a gente quer. Ou, pior ainda, pedir-lhe aquela "coisa" de
que a gente precisa.
@ - ccalligari@uol.com.br
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