São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

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Mônica Bergamo

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Caio Blat relata o preconceito que sofreu em São Paulo ao incorporar características de um jovem do Capão Redondo, na periferia da cidade

Filipe Redondo/Folha Imagem
O diretor Jeferson De (com Sílvio Guindane) diz perceber a discriminação no bairro nobre onde mora


Vida de mano

Numa tarde de domingo, no início de fevereiro, o ator Caio Blat estava caminhando na rua São Carlos do Pinhal (paralela à avenida Paulista), onde mora, quando começou a chover. Buscou abrigo "em um restaurante "furreba", tipo pizzaria de bairro, desses que põem quadros abstratos na parede", chamado Arcadas Galeto. Não tinha almoçado. Resolveu comer alguma coisa e sentou-se em uma mesa no meio do salão.

 

O ator está com aparência bem diferente daquela de "mocinho" das novelas da TV Globo. Para estrelar o filme "Bróder!", do diretor Jeferson De, que acaba de ser rodado na região do Capão Redondo, em SP, ele incorporou características do personagem Macu (inspirado em "Macunaíma"), um rapaz de periferia que é branco, se vê como negro e acaba no crime. Caio, além de alugar uma casa simples no Capão, raspou o cabelo em um salão do bairro e fez até um risco na cabeça com gilete, imitando o visual que, diz, "surgiu na cadeia e depois foi imitado na favela".
 

À mesa, naquele domingo, ele foi surpreendido por um funcionário do restaurante. "Era o gerente, um alemãozinho de cabelinho com gel e um paletozinho. Encostou e falou assim: "Eu não vou ter problema com você não, né?'", conta. O ator perguntou a que tipo de problema ele se referia. "Você sabe muito bem. Eu te conheço, eu te conheço. Vai querer alguma coisa?" "Quero um suco de laranja e um galeto", respondeu. "O que você quiser, você pede no caixa." Caio perguntou se os outros clientes também precisaram fazer aquilo. O gerente repetiu as instruções e o deixou sozinho na mesa.
 

"Fiquei 15 minutos em estado de choque. Olhava a chuva, as pessoas comendo e falava: "Isso não tá acontecendo. O cara me reconheceu, fez uma brincadeira e vai voltar para me servir.'" Caio acabou indo embora, sem suco, sem galeto e com "uma puta humilhação, uma vergonha", misturadas a uma certa felicidade. "Eu devia estar emanando a vibração do personagem, para ser tratado daquele jeito. O Macu estava todo comigo." Em outra ocasião, foi barrado na porta giratória de um banco. "Vi como é ser tratado como suspeito."
 

De volta ao Capão, contou a história para o diretor Jeferson De e para os atores Jonathan Haagensen ("Cidade de Deus") e Sílvio Guindane ("De Passagem"), todos negros. Os três lhe disseram: "Bem-vindo ao clube". "Ele sacou que foi só cortar o cabelo e andar como maloqueiro e já era. É o que acontece se um menino do Capão tentar estudar na Faap ou procurar emprego na rua Oscar Freire", avalia Jeferson. O diretor diz viver isso quase diariamente. "Eu moro na Oscar Freire. Quando saio, percebo os olhares. Existe uma coisa meio paramilitar dos seguranças. Quando entro na [livraria] Fnac de Pinheiros, eles se revezam para me seguir. E olha que já deixei um bom dinheiro do cinema em compras lá." A loja diz que nunca registrou problemas de racismo envolvendo seus funcionários e que profissionais que se comportem assim serão desligados.
 

Por sugestão da coluna, Caio Blat aceitou voltar ao Arcadas Galeto em um domingo no início deste mês. Desta vez, ele veste camiseta branca, calça jeans e havaianas azuis. O risco na testa é quase invisível, porque seu cabelo começa a crescer. "Tem que pegar ficha no caixa ou pode pedir na mesa?", diz, após se sentar no mesmo assento que ocupou um mês antes e receber o cardápio. "Pode ser na mesa", responde o garçom. Escolhe novamente suco de laranja e galeto e, desta vez, é atendido. Uma garota o reconhece, pede autógrafo e tira fotos. O garçom passa, põe a mão em seu ombro e diz: "É bom ser famoso. Todo mundo vem falar com você". "Tô me sentindo mal. Eu tinha jurado não colocar mais os pés aqui", diz Caio.
 

Nas duas TVs de tela plana do restaurante, Corinthians e Palmeiras se enfrentam. "Naquele dia, era esse mesmo horário e também estava passando jogo", diz o ator, corintiano. "Fiquei imaginando quantas vezes eles já serviram com minhas novelas passando. Quanta gente já almoçou aqui me assistindo e o cara não queria me atender!"
 

Depois que Caio recebe o suco, o repórter chama o gerente. Está de camisa e gravata e se identifica como Paulo Roberto. Reconhece o ator? "Sim, ele esteve aqui há um mês", responde. E por que não foi atendido na ocasião? "Foi um equívoco. A gente não chegou a um entendimento e só percebemos depois que era ele. No intervalo entre o almoço e o jantar, tem que comprar ficha no caixa. Acredito que a gente tenha atendido ele mal. Não houve tempo de conversarmos." Caio argumenta que ficou "dez minutos na mesa, esperando".
 

"Eu estava fazendo um filme no qual vivia um marginal e tive a nítida sensação de que não fui atendido pela minha aparência", diz Caio ao gerente. "Eu até perguntei se não te conhecia", responde Paulo Roberto. "É, mas não sabia de onde. Fiquei pensando se vocês já foram assaltados aqui, se achou que eu era algum bandido." "Graças a Deus, nunca aconteceu", diz o gerente, falando que o "terceiro erro" do estabelecimento foi não terem ido atrás de Caio quando ele saiu.
 

O ator cancela o pedido feito no restaurante e pega o caminho de casa. No dia seguinte, ele viajaria para o Rio, para os workshops de "Ciranda de Pedra", próxima novela das seis. Nela, será Afonso, um "alpinista social", que usa roupas finas e sapato cromado alemão.

Caio sacou que foi só cortar o cabelo e andar como maloqueiro e já era. É o que acontece se um menino do Capão tentar estudar na Faap ou procurar emprego na rua Oscar Freire

JEFERSON DE, diretor de "Bróder!"

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