São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

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Escritor era como seus personagens, diz Caetano

Para cantor baiano, a inocência dos primeiros textos não comprometem seu legado

Artista diz que Jorge Amado realimentou os melhores mitos do Brasil, como a mestiçagem, a doçura afro-lusitana e o culto ao prazer

DA ENVIADA ESPECIAL À BAHIA

Caetano Veloso faz anos no dia 7 de agosto. Em 2001, na véspera de seu aniversário, o cantor fazia um show em Salvador. Quando saiu do palco e preparava o "bis", a mulher Paula Lavigne deu-lhe a notícia: "Jorge Amado morreu".
Desnorteado, ele voltou ao palco e disse: "Morreu a maior personalidade da Bahia". Imagens dessa passagem podem ser vistas no YouTube (digitar "Caetano", "homenagem", "Jorge Amado").
Leia, abaixo, a entrevista que Caetano concedeu à Folha, sobre sua relação com a obra e a personalidade do conterrâneo. (SYLVIA COLOMBO)

FOLHA - Ao observar os tipos que se vêem hoje nas ruas de Salvador, têm-se a impressão de que Amado "romantizou" figuras que, na realidade, são mais duras. Poder fazer de pessoas rudes personagens "mágicos" define um bom escritor?
CAETANO VELOSO
- Quase tudo do que você lê em Jorge foi escrito há muitos anos. Quando havia menos gente morando em áreas urbanas, Salvador era bem menor e bem mais pobre, com a arquitetura antiga predominando. As pessoas hoje não vivem mais nesse mundo. Mesmo assim, seja em Salvador, seja nas cidades do Recôncavo, encontro doçura e poesia em muitíssimas pessoas.
Jorge tinha um estilo exuberante e, no início, claramente demagógico, mas a força da escrita dele não vem de uma possível adição de magia a personagens rudes. Essa não é a marca da boa ficção. Jorge não nos iludia sobre a rudeza dos seus tipos. Muitas vezes, a magia deles vinha exatamente disso.

FOLHA - Você crê que o peso da mensagem ideológica de sua obra acabou por esvaziar, nos dias de hoje, o sentido de sua literatura?
CAETANO
- Houve um tempo em que as cenas piegas e as frases edificantes que tanto contribuíram para os comunistas difundirem Jorge pelo mundo me causavam certa repugnância. Eu era muito jovem. E antes, ainda quase criança, tinha me comovido com "Mar Morto" e "Capitães da Areia". Mas a Bahia de Jorge era mais forte do que essas questões. Hoje representantes da esquerda no poder esboçam antipatia a ele por sua ligação com Antonio Carlos Magalhães.
Um agente literário americano me disse que deixara de gostar de seus livros desde que ele, por causa do stalinismo, tinha rechaçado o comunismo e passado a escrever o que começou com "Gabriela, Cravo e Canela". Era um americano da esquerda tradicional. Eu sou o oposto disso: um brasileiro da ex-esquerda anticonvencional.
Primeiro passei a amar a inocência dos textos da juventude e a graça dos da maturidade. Em todos, o jeito da Bahia. Gosto de Jorge Amado como gosto de Fellini e de axé music.

FOLHA - Alguns autores tidos como regionais nunca foram admitidos no primeiro time da nossa literatura. Amado pouco é mencionado nos cursos de letras da USP e de outras universidades. Há preconceito?
VELOSO
- Eu próprio tenho uma espécie de preconceito contra a USP. Então estamos equilibrados. Gosto mais de um texto de Mario Schenberg em que ele compara Jorge Mautner a Jorge Amado. Sou totalmente das elegâncias de Rosa e Machado, de Cabral e Drummond. Mas, admirador dos extremismos dos concretistas Campos e Pignatari, voltei a Jorge antes de voltar a Clarice Lispector. Sou também um pouco parente do Glauber Rocha, que dizia preferir José de Alencar a Machado (embora nem por sonho eu prefira Alencar a Machado). Gozo quando leio Haroldo de Campos sobre "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água" e "Iracema".

FOLHA - Amado foi vítima de um banimento por parte de intelectuais de esquerda que diziam que ele romantizava a pobreza, fazia o elogio da resignação diante dos problemas sociais ao exaltar a preguiça, a sensualidade, a alegria acima das dificuldades. Concorda com isso?
VELOSO
- Vi algo disso. Era o mesmo tom com que se desqualificava Gilberto Freyre. Tinha algo do problema com Pelé. Sou contra esse clima. Prefiro Jorge sempre. Vejo hoje gente chata chiando contra Jorge gostar de ACM. Eu fui sempre contra ACM. Fui seu inimigo político declarado e incondicionalmente impenitente (ele próprio sabia disso melhor do que repórteres e articulistas), mas adoro Jorge gostar dele.

FOLHA - Amado consolidou mitos nacionais?
VELOSO
- Jorge é grande. Os mitos que ele realimentou eram os melhores: a mestiçagem, a doçura afro-lusitana, um povo narcisista e amante do prazer. Ele próprio era como seus personagens. Inabalavelmente feliz e baiano, ateu e testemunha de milagres no candomblé, barrigudo e elegante. Um grande destino, uma grande vida que se deu em grande parte por causa da literatura.


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