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Escritor era como seus personagens, diz Caetano
Para cantor baiano, a inocência dos primeiros textos não comprometem seu legado
Artista diz que Jorge Amado realimentou os melhores mitos do Brasil, como a mestiçagem, a doçura afro-lusitana e o culto ao prazer
DA ENVIADA ESPECIAL À BAHIA
Caetano Veloso faz anos no
dia 7 de agosto. Em 2001, na
véspera de seu aniversário, o
cantor fazia um show em Salvador. Quando saiu do palco e
preparava o "bis", a mulher
Paula Lavigne deu-lhe a notícia: "Jorge Amado morreu".
Desnorteado, ele voltou ao
palco e disse: "Morreu a maior
personalidade da Bahia". Imagens dessa passagem podem
ser vistas no YouTube (digitar
"Caetano", "homenagem",
"Jorge Amado").
Leia, abaixo, a entrevista que
Caetano concedeu à Folha, sobre sua relação com a obra e a
personalidade do conterrâneo.
(SYLVIA COLOMBO)
FOLHA - Ao observar os tipos que
se vêem hoje nas ruas de Salvador,
têm-se a impressão de que Amado
"romantizou" figuras que, na realidade, são mais duras. Poder fazer de
pessoas rudes personagens "mágicos" define um bom escritor?
CAETANO VELOSO - Quase tudo do
que você lê em Jorge foi escrito
há muitos anos. Quando havia
menos gente morando em
áreas urbanas, Salvador era
bem menor e bem mais pobre,
com a arquitetura antiga predominando. As pessoas hoje
não vivem mais nesse mundo.
Mesmo assim, seja em Salvador, seja nas cidades do Recôncavo, encontro doçura e poesia
em muitíssimas pessoas.
Jorge tinha um estilo exuberante e, no início, claramente
demagógico, mas a força da escrita dele não vem de uma possível adição de magia a personagens rudes. Essa não é a marca da boa ficção. Jorge não nos
iludia sobre a rudeza dos seus
tipos. Muitas vezes, a magia deles vinha exatamente disso.
FOLHA - Você crê que o peso da
mensagem ideológica de sua obra
acabou por esvaziar, nos dias de hoje, o sentido de sua literatura?
CAETANO - Houve um tempo
em que as cenas piegas e as frases edificantes que tanto contribuíram para os comunistas
difundirem Jorge pelo mundo
me causavam certa repugnância. Eu era muito jovem. E antes, ainda quase criança, tinha
me comovido com "Mar Morto" e "Capitães da Areia". Mas a
Bahia de Jorge era mais forte
do que essas questões. Hoje representantes da esquerda no
poder esboçam antipatia a ele
por sua ligação com Antonio
Carlos Magalhães.
Um agente literário americano me disse que deixara de gostar de seus livros desde que ele,
por causa do stalinismo, tinha
rechaçado o comunismo e passado a escrever o que começou
com "Gabriela, Cravo e Canela". Era um americano da esquerda tradicional. Eu sou o
oposto disso: um brasileiro da
ex-esquerda anticonvencional.
Primeiro passei a amar a inocência dos textos da juventude
e a graça dos da maturidade.
Em todos, o jeito da Bahia. Gosto de Jorge Amado como gosto
de Fellini e de axé music.
FOLHA - Alguns autores tidos como
regionais nunca foram admitidos no
primeiro time da nossa literatura.
Amado pouco é mencionado nos
cursos de letras da USP e de outras
universidades. Há preconceito?
VELOSO - Eu próprio tenho
uma espécie de preconceito
contra a USP. Então estamos
equilibrados. Gosto mais de um
texto de Mario Schenberg em
que ele compara Jorge Mautner a Jorge Amado. Sou totalmente das elegâncias de Rosa e
Machado, de Cabral e Drummond. Mas, admirador dos extremismos dos concretistas
Campos e Pignatari, voltei a
Jorge antes de voltar a Clarice
Lispector. Sou também um
pouco parente do Glauber Rocha, que dizia preferir José de
Alencar a Machado (embora
nem por sonho eu prefira Alencar a Machado).
Gozo quando leio Haroldo de
Campos sobre "A Morte e a
Morte de Quincas Berro d'Água" e "Iracema".
FOLHA - Amado foi vítima de um
banimento por parte de intelectuais
de esquerda que diziam que ele romantizava a pobreza, fazia o elogio
da resignação diante dos problemas
sociais ao exaltar a preguiça, a sensualidade, a alegria acima das dificuldades. Concorda com isso?
VELOSO - Vi algo disso. Era o
mesmo tom com que se desqualificava Gilberto Freyre. Tinha algo do problema com Pelé.
Sou contra esse clima. Prefiro
Jorge sempre. Vejo hoje gente
chata chiando contra Jorge
gostar de ACM. Eu fui sempre
contra ACM. Fui seu inimigo
político declarado e incondicionalmente impenitente (ele
próprio sabia disso melhor do
que repórteres e articulistas),
mas adoro Jorge gostar dele.
FOLHA - Amado consolidou mitos
nacionais?
VELOSO - Jorge é grande. Os mitos que ele realimentou eram
os melhores: a mestiçagem, a
doçura afro-lusitana, um povo
narcisista e amante do prazer.
Ele próprio era como seus personagens. Inabalavelmente feliz e baiano, ateu e testemunha
de milagres no candomblé, barrigudo e elegante. Um grande
destino, uma grande vida que
se deu em grande parte por
causa da literatura.
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