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Biografia sugere que Kapuscinski mentia em textos
Obra recém-lançada na Polônia acusa lendário jornalista de transpor fronteira entre verdade e ficção em suas obras
Caso reacendeu debate sobre os limites entre literatura e reportagem; Garton Ash e John Snow ecoam a versão do livro
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Ao relatar guerras, golpes e
revoluções dos locais mais remotos do mundo, o polonês
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) criou um gênero jornalístico, espécie de reportagem
político-literária.
Aos poucos, sua reputação
ganhou contornos míticos. Kapuscinski se tornara amigo de
Che Guevara na Bolívia e de Patrice Lumumba no Congo. Cobrira 27 golpes, fora preso mais
de 40 vezes e sobrevivera a sete
sentenças de morte. Publicara
mais de dez livros, alguns premiados e muitos traduzidos para cerca de 30 idiomas.
As 600 páginas de uma biografia recém-lançada na Polônia, no entanto, colocam um
ponto de interrogação nas façanhas de jornalista. Segundo
"Kapuscinski Non-Fiction", de
Artur Domoslawski, sua obra
pertence ao reino da ficção.
Testemunho ou invenção?
Trata-se do quinto livro a explorar a vida, a obra e o mito em
torno de Kapuscinski. Biografias anteriores levantaram suspeitas de que o jornalista prestasse serviços de espionagem
aos comunistas em poder na
Polônia, numa caça às bruxas
ainda comum naquele país.
O que faz o livro de Domoslawski é questionar a veracidade de suas "não-ficções".
Em entrevista ao diário britânico "The Guardian", o autor
exemplificou duas descobertas
dos três anos em que refez os
passos do jornalista. Em Uganda, Kapuscinski descrevera que
os peixes no lago Vitória estavam gordos de tanto comer restos dos corpos de vítimas do ditador Idi Amin. Na verdade,
eles estavam maiores por conta
da fartura de alimento provocada por uma cheia do rio Nilo.
Em outro caso, o polonês relatou com crueza um massacre
ocorrido no México em 1968. A
biografia alega que Kapuscinski sequer estava no México.
Guevara? Lumumba? De
acordo com Domoslawski, essas amizades nunca existiram.
"Meu livro é justo. Não acho
que tenha manchado a imagem
nem o legado de Kapuscinski.
Apenas descobri que a verdade
é bem mais complexa do que o
mito. Mas ainda o considero
como um mentor", disse o autor, também jornalista.
A viúva de Kapuscinski, Alicja, recorreu aos tribunais para
impedir que o livro chegasse às
prateleiras, sem sucesso.
Um novo velho debate
O chamado jornalismo literário sempre foi terreno fértil
para a discussão sobre os limites entre ficção e realidade.
A nova biografia de Kapuscinski reacendeu este velho debate. O âncora do canal de TV
britânico Channel 4, John
Snow, escreveu em seu blog:
"Sempre suspeitei que o repórter polonês fosse uma farsa".
No texto, ele descreve as inúmeras guerras e conflitos que
cobriu sem nunca ter encontrado com Kapuscinski.
O professor de história de
Oxford Timothy Garton Ash
escreveu que cruzar o limite
entre ficção e realidade no jornalismo significa classificá-lo,
obrigatoriamente, como ficção.
Ash brinca que uma solução fácil para a polêmica é simplesmente mudar as obras de Kapuscinski de prateleira: de
"não-ficção" para "ficção".
Com agências internacionais
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