São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 2011

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MARCELO COELHO

Nada a explicar


Dos tsunamis à crise de 2008, especialistas e técnicos estão sempre expostos à esparrela


UM TERREMOTO de 8,9 pontos na escala Richter não é, pelo que se viu, coisa frequente -nem mesmo no Japão.
Por mais rara que tenha sido a tragédia, eu sigo o que disse Janio de Freitas em coluna recente aqui na Folha. Gostaria de saber em detalhes, agora, o que têm a declarar os especialistas em segurança nuclear a respeito dos riscos de vazamento e contaminação numa eventualidade dessas.
Talvez tenhamos de esperar alguns anos, até que seja produzido (e ganhe o Oscar) um documentário sobre o tema.
Por enquanto, o jeito é se contentar com "Trabalho Interno", documentário de Charles Ferguson sobre a crise econômica de 2008.
Pode-se prever que terá longa vida nos colégios e faculdades, pelo muito que consegue explicar sobre a bolha imobiliária americana e o carrossel dos derivativos. Ainda assim, não consegue dispensar, na narração de Matt Damon, e mais ainda nas legendas, expressões que são cifradas para muita gente.
No geral, assistir ao filme tem um gosto inconfundível de lição de casa.
Faltou um toque de Michael Moore em "Trabalho Interno".
Mas só um toque, por favor. A julgar pelo seu "Capitalismo: Uma História de Amor" (disponível em DVD), o problema é que Michael Moore já perdeu a capacidade de distinguir entre o que é recurso legítimo de entretenimento e apelo à barafunda sentimental.
Michael Moore se arrasta com equipe, barriga e boné na missão de aborrecer vigias e seguranças de megacorporações que se recusam a recebê-lo.
Parece ainda ter a ideia de que, em algum ponto da década de 1960 ou 1970, a "América" era um lugar maravilhoso de se viver, e não o centro de operações de um capitalismo pouco melhor do que o que agora ele critica.
"Trabalho Interno" não tem sentimentalismo quase nenhum -mas o final, com música e a Estátua da Liberdade empunhando sua tocha, é de doer.
O mais divertido, o imperdível mesmo do filme, são as entrevistas com os economistas, dublês de consultores e acadêmicos, que -como em qualquer caso de terremoto ou de tragédia- foram regiamente pagos para afirmar que não havia nenhum risco de desastre.
Um deles, o professor Frederic Mishkin, praticamente implode em cena, ao ser confrontado com o relatório em que assegurava a plena saúde financeira da Islândia, meses antes do derretimento do país. Outro tipo muito ensaboado, o professor Glenn Hubbard, abespinha-se enquanto o diretor do documentário o tritura com perguntas.
Mishkin reagiu: a polêmica pode ser acompanhada no blog de Martin Wolf, "Economists Forum". O filme não deixa, entretanto, de ter um aspecto de vingança particular contra a arrogância desses academicozinhos.
Passado o prazer com o embatucamento das pequenas sumidades, fiquei com algumas dúvidas depois do filme. Como tem sido a tônica em todas as análises sobre o colapso de 2008, insiste-se na ideia de que faltou regulamentação para o mercado financeiro.
Mas o filme também dá força à revolta contra o "bailout", o socorro de emergência dado aos bancos. Ora, será que um neoliberalismo para valer não teria deixado os bancos falirem? Tratar o "bailout" como se fosse um escândalo não combina com criticar os fanáticos do mercado.
Além disso, o documentário mostra alguns economistas que, mesmo de uma ótica pró-mercado, estavam atentos para o problema. Um especialista do FMI, Raghuram Rajan, notou a contradição do sistema, a partir de um raciocínio puramente individualista. A crise poderia vir, advertiu ele, porque o sistema estava premiando (e não punindo) os agentes que corressem mais riscos. Um furo, portanto, no mero jogo dos estímulos e expectativas oferecidos aos agentes econômicos.
A essa visão friamente racional e "micro" do problema, com a qual concordam autoridades econômicas das mais cartesianas, como a ministra das Finanças da França, por exemplo, o filme acrescenta considerações moralistas -e passa a entrevistar uma cafetina com vastos serviços a Wall Street. Mostra mansões e iates dos ricaços. Como se tudo isso tivesse começado ontem.
Contados alguns mortos e feridos, muita coisa sai intacta do documentário -e, como depois de todo o desastre, sabe-se que cada reconstrução põe tudo de volta no mesmo lugar.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris





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