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Geografia e política depois do vendaval
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
O que pensar quando as pessoas entram no seu espaço de
trabalho, sobem nas cadeiras e
nas mesas? Comprar um plástico para proteger os fundilhos,
ou tentar entender o que se
passa?
Quando o lugar de trabalho
é o Parlamento nacional, a segunda alternativa se impõe.
Basta lembrar da história narrada por Jorge Luis Borges, no
livro de entrevistas dadas a Estevan Peicovich. Trata-se da
história de um doutor Handerson, acontecida, segundo crê
Borges, no século 18. Estava
discutindo teologia na Inglaterra, e alguém lhe jogou um
copo de vinho na cara. Handerson se enxugou e disse: "Isso é uma digressão, continuo à
espera dos seus argumentos".
Dois livros publicados na Inglaterra, "Geografias da Resistência" e "Geografias das Culturas Jovens" (Routledge), vieram a estimular uma interpretação político-espacial das invasões do Parlamento. Não é
bem que a história tenha acabado, mas a geografia parece
ter descoberto a política e passa a ser mais um instrumento
de análise a estabelecer conexões entre espaço e luta pelo
poder.
A primeira invasão do plenário com oradores de pé nas
cadeiras em que nós nos sentamos foi basicamente proletária. Era como se fizessem uma
crítica radical do Parlamento,
uma crítica marxista, na medida em que viam o Parlamento como o espaço das vontades
particulares organizadas.
O proletariado, sabemos pela
teoria, encarna a vontade geral, passa a ser o condutor do
destino da humanidade. E
mais uma vez demonstra o perigo de se acreditar que encarnamos a vontade superior.
Termina-se sempre pisando
em cima das diferentes vontades particulares.
Depois do proletariado veio o
lumpesinato -pessoas possivelmente necessitadas de dinheiro e que gritavam palavras de ordem que não entendiam e, na falta de argumentos, utilizavam a perigosa digressão que é o soco inglês. O
pior é que nesse caso a fúria do
assalariado revelava claramente o cinismo de seus patrões.
Não é preciso ser muito rigoroso para concluir que, quando dirigentes pagam as pessoas
para gritarem e brigarem por
suas causas, é porque já não
acreditam nelas. O cinismo
que se revela aí, de uma certa
maneira expõe a fragilidade
da democracia. Basta um curso elementar sobre crimes comuns para ver que, nos lugares
abandonados pelo poder público, os delinquentes sempre
se instalam. Se quebram uma
janela, e não se conserta, a tendência é quebrarem uma outra, e os estilhaços são uma
clara forma de determinar o
poder sobre determinado espaço. Com algumas pichações e o
lixo acumulado (os convencionais terão de pagar multa de
R$ 5.000), constrói-se o perfeito cenário de domínio de máfias.
A celebração da escolha de
uma coligação favorita para
dirigir o Brasil por mais quatro
anos acaba enviando uma
mensagem de desesperança.
Ela se celebra com montanhas
de lixo, pisadas nas cadeiras
onde sentam os representantes
do povo, dirigentes cínicos cuja
capacidade de persuasão custa
R$ 40 e, por último, a primitiva presença do soco inglês.
Ao pensar que esse bloco de
forças políticas deve conduzir
o Brasil até o século 21, tememos não apenas pelo Brasil como pelo próprio século 21. Observar nos jornais os sorrisos
de vitória nos leva logo à pergunta: mas estão rindo de quê?
Não sou ingênuo para ignorar que riem da possível permanência no poder. Espanta-me não descobrir em seu
olhar nenhuma névoa de inquietação. Chega-se ao poder e
pronto. Não importa o rastro
de esterilidade que deixam no
caminho, nem a ducha de
água fria que lançam nos sonhos dos que ainda esperam
algo deles.
No fundo, o que se retém é o
jogo pesado, às vezes lembrando certos momentos do sindicalismo americano, nos filmes
de Kazan. Grupos dispostos ao
combate físico, armas, total
desrespeito pelo adversário.
No entanto, é necessário limpar a cadeira, acender um incenso e repetir o doutor Handerson: isso foi uma digressão,
continuamos esperando os
seus argumentos.
Para sermos fiéis a uma análise político-geográfica, é bom
advertir que, se continuam
trocando socos onde se deve
discutir e pisando onde se deve
sentar, o espaço que simboliza
a democracia representativa
será subvertido. E o espaço que
já não era perfeito sofre o pior
mal que poderia nos colher
nessa virada do século: a regressão a formas insuportáveis
de viver a pluralidade.
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