São Paulo, segunda, 16 de março de 1998

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Geografia e política depois do vendaval

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

O que pensar quando as pessoas entram no seu espaço de trabalho, sobem nas cadeiras e nas mesas? Comprar um plástico para proteger os fundilhos, ou tentar entender o que se passa?
Quando o lugar de trabalho é o Parlamento nacional, a segunda alternativa se impõe. Basta lembrar da história narrada por Jorge Luis Borges, no livro de entrevistas dadas a Estevan Peicovich. Trata-se da história de um doutor Handerson, acontecida, segundo crê Borges, no século 18. Estava discutindo teologia na Inglaterra, e alguém lhe jogou um copo de vinho na cara. Handerson se enxugou e disse: "Isso é uma digressão, continuo à espera dos seus argumentos".
Dois livros publicados na Inglaterra, "Geografias da Resistência" e "Geografias das Culturas Jovens" (Routledge), vieram a estimular uma interpretação político-espacial das invasões do Parlamento. Não é bem que a história tenha acabado, mas a geografia parece ter descoberto a política e passa a ser mais um instrumento de análise a estabelecer conexões entre espaço e luta pelo poder.
A primeira invasão do plenário com oradores de pé nas cadeiras em que nós nos sentamos foi basicamente proletária. Era como se fizessem uma crítica radical do Parlamento, uma crítica marxista, na medida em que viam o Parlamento como o espaço das vontades particulares organizadas.
O proletariado, sabemos pela teoria, encarna a vontade geral, passa a ser o condutor do destino da humanidade. E mais uma vez demonstra o perigo de se acreditar que encarnamos a vontade superior. Termina-se sempre pisando em cima das diferentes vontades particulares.
Depois do proletariado veio o lumpesinato -pessoas possivelmente necessitadas de dinheiro e que gritavam palavras de ordem que não entendiam e, na falta de argumentos, utilizavam a perigosa digressão que é o soco inglês. O pior é que nesse caso a fúria do assalariado revelava claramente o cinismo de seus patrões.
Não é preciso ser muito rigoroso para concluir que, quando dirigentes pagam as pessoas para gritarem e brigarem por suas causas, é porque já não acreditam nelas. O cinismo que se revela aí, de uma certa maneira expõe a fragilidade da democracia. Basta um curso elementar sobre crimes comuns para ver que, nos lugares abandonados pelo poder público, os delinquentes sempre se instalam. Se quebram uma janela, e não se conserta, a tendência é quebrarem uma outra, e os estilhaços são uma clara forma de determinar o poder sobre determinado espaço. Com algumas pichações e o lixo acumulado (os convencionais terão de pagar multa de R$ 5.000), constrói-se o perfeito cenário de domínio de máfias.
A celebração da escolha de uma coligação favorita para dirigir o Brasil por mais quatro anos acaba enviando uma mensagem de desesperança. Ela se celebra com montanhas de lixo, pisadas nas cadeiras onde sentam os representantes do povo, dirigentes cínicos cuja capacidade de persuasão custa R$ 40 e, por último, a primitiva presença do soco inglês.
Ao pensar que esse bloco de forças políticas deve conduzir o Brasil até o século 21, tememos não apenas pelo Brasil como pelo próprio século 21. Observar nos jornais os sorrisos de vitória nos leva logo à pergunta: mas estão rindo de quê?
Não sou ingênuo para ignorar que riem da possível permanência no poder. Espanta-me não descobrir em seu olhar nenhuma névoa de inquietação. Chega-se ao poder e pronto. Não importa o rastro de esterilidade que deixam no caminho, nem a ducha de água fria que lançam nos sonhos dos que ainda esperam algo deles.
No fundo, o que se retém é o jogo pesado, às vezes lembrando certos momentos do sindicalismo americano, nos filmes de Kazan. Grupos dispostos ao combate físico, armas, total desrespeito pelo adversário.
No entanto, é necessário limpar a cadeira, acender um incenso e repetir o doutor Handerson: isso foi uma digressão, continuamos esperando os seus argumentos.
Para sermos fiéis a uma análise político-geográfica, é bom advertir que, se continuam trocando socos onde se deve discutir e pisando onde se deve sentar, o espaço que simboliza a democracia representativa será subvertido. E o espaço que já não era perfeito sofre o pior mal que poderia nos colher nessa virada do século: a regressão a formas insuportáveis de viver a pluralidade.



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