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CRÍTICA
Peça põe arte a serviço dos que não têm como se expressar
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"Dizem que o que faço é arte, mas é minha salvação
na terra", afirmava Arthur Bispo
do Rosário. Na cela-forte do hospital psiquiátrico Juliano Moreira,
Bispo recriava o mundo em mantos bordados, uma cosmologia
pessoal que resgatava sua identidade de excluído. Negro, pobre,
esquizofrênico, torna-se um artista de renome internacional.
O fascínio pelo caso de Bispo se
presta a muito mais que um discurso generalizante sobre arte e
loucura. O grande valor plástico
de suas obras não pode ser prova
de que todos os loucos são artistas
incompreendidos, por exemplo:
seria tirar o seu mérito individual,
desconsiderar suas referências espantosamente sofisticadas, como
a de Shakespeare.
Por outro lado, não se pode
compará-lo a Van Gogh ou a Artaud. Seu projeto não era artístico,
mas existencial: ao desafiar o outro a dizer qual a cor de sua aura,
propunha-lhe um teste de sensibilidade que o habilitava a compartilhar seu mundo, fugindo da
desolação da realidade.
Um Dom Quixote sergipano,
portanto. O grande mérito de
João Miguel foi o de não retratá-lo
enquanto símbolo ou mito, mas
enquanto indivíduo. Reconstrói
Bispo pelo método de Stanislavski, pelas ações físicas, plausível em
cada gesto, profundo em cada palavra, por mais delirantes que elas
possam soar, se ouvidas fora do
contexto em que foram ditas.
Contexto que João Miguel vivenciou intensamente, em anos
de convivência no Juliano Moreira de Salvador, tendo como instrumento sua arte de palhaço. Seu
alter ego Magal é um palhaço profeta errante, da linhagem nordestina do Xuxu de Luís Carlos Vasconcelos, aquele que resgata o humor em meio à desolação. Um palhaço que dialoga com os loucos:
resgate da razão dos excluídos.
Não um discurso ideológico, mas
o depoimento de uma busca pela
salvação.
Acrescente-se à experiência a
contribuição de Edgar Navarro,
"parteiro" do texto e co-diretor,
um veterano e polêmico cineasta
que tem no currículo um outro
Dom Quixote. "Superoutro", seu
média-metragem de ficção do final da década de 1980, muito premiado e pouco visto, mostra um
louco de rua felliniano que, como
Bispo, reconstitui o real a partir
do lixo cultural.
Não há espaço para paternalismo em "Bispo", portanto. A
imensa dignidade que a montagem emana é devida ao fato que
foi concebida por artistas que
põem sua arte a serviço dos que
não têm como se expressar. A
passagem sonhada por Bispo para um mundo sem dor é realizada
pela cuidadosa produção, o texto
contundente, a iluminação ágil, a
bela trilha e pela enorme generosidade interpretativa de João Miguel. Que tem, como não poderia ser diferente, a aura azul.
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