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São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2003

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CRÍTICA

Peça põe arte a serviço dos que não têm como se expressar

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Dizem que o que faço é arte, mas é minha salvação na terra", afirmava Arthur Bispo do Rosário. Na cela-forte do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, Bispo recriava o mundo em mantos bordados, uma cosmologia pessoal que resgatava sua identidade de excluído. Negro, pobre, esquizofrênico, torna-se um artista de renome internacional.
O fascínio pelo caso de Bispo se presta a muito mais que um discurso generalizante sobre arte e loucura. O grande valor plástico de suas obras não pode ser prova de que todos os loucos são artistas incompreendidos, por exemplo: seria tirar o seu mérito individual, desconsiderar suas referências espantosamente sofisticadas, como a de Shakespeare.
Por outro lado, não se pode compará-lo a Van Gogh ou a Artaud. Seu projeto não era artístico, mas existencial: ao desafiar o outro a dizer qual a cor de sua aura, propunha-lhe um teste de sensibilidade que o habilitava a compartilhar seu mundo, fugindo da desolação da realidade.
Um Dom Quixote sergipano, portanto. O grande mérito de João Miguel foi o de não retratá-lo enquanto símbolo ou mito, mas enquanto indivíduo. Reconstrói Bispo pelo método de Stanislavski, pelas ações físicas, plausível em cada gesto, profundo em cada palavra, por mais delirantes que elas possam soar, se ouvidas fora do contexto em que foram ditas.
Contexto que João Miguel vivenciou intensamente, em anos de convivência no Juliano Moreira de Salvador, tendo como instrumento sua arte de palhaço. Seu alter ego Magal é um palhaço profeta errante, da linhagem nordestina do Xuxu de Luís Carlos Vasconcelos, aquele que resgata o humor em meio à desolação. Um palhaço que dialoga com os loucos: resgate da razão dos excluídos. Não um discurso ideológico, mas o depoimento de uma busca pela salvação.
Acrescente-se à experiência a contribuição de Edgar Navarro, "parteiro" do texto e co-diretor, um veterano e polêmico cineasta que tem no currículo um outro Dom Quixote. "Superoutro", seu média-metragem de ficção do final da década de 1980, muito premiado e pouco visto, mostra um louco de rua felliniano que, como Bispo, reconstitui o real a partir do lixo cultural.
Não há espaço para paternalismo em "Bispo", portanto. A imensa dignidade que a montagem emana é devida ao fato que foi concebida por artistas que põem sua arte a serviço dos que não têm como se expressar. A passagem sonhada por Bispo para um mundo sem dor é realizada pela cuidadosa produção, o texto contundente, a iluminação ágil, a bela trilha e pela enorme generosidade interpretativa de João Miguel. Que tem, como não poderia ser diferente, a aura azul.


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